Por: Bruno Fontana
28/05/2022

O que é a teoria dos quatro discursos?
Resenha: Aristóteles em Nova Perspectiva
Pedra angular do pensamento de Olavo de Carvalho, este livro é inevitável para quem quer conhecer a obra do maior intelectual brasileiro vivo, definitivamente, hors concurs. O título, aos não iniciados, pode cheirar a estudo especializado chatíssimo de pesquisador acadêmico uspiano; nada mais falso e contrário à natureza daquele que chama a intelligentzia do país de burritzia. Um verdadeiro page-turner filosófico, Aristóteles em Nova Perspectiva, muito mais do que tese do fulaninho de tal sobre não sei quem, é o fundamento de uma Filosofia da Cultura que, se à primeira vista parece original até demais, calca-se no entanto em modelos bem mais antigos e prováveis. De fato, esta pequenina obra-prima representa o início de um renascimento da alta cultura brasileira a partir da recuperação, com desfibrilador, da já semi-finada “cultura ocidental”, transformando o Brasil em um microcosmo improvável, mas vivo, de nossa velha civilização.
CAPÍTULO 1 - OS QUATRO DISCURSOS
Neste capítulo introdutório, Olavo apresenta a essência do livro: a Teoria dos Quatro Discursos. A ideia é que à obra do Filósofo – como o chamava São Tomás – subjaz a concepção de que o discurso humano é uma única potência que se atualiza de quatro formas diferentes: poética, retórica, dialética e lógica ou analítica; e, mais do que isso, que essas quatro formas correspondem às quatro ciências aristotélicas do discurso com os mesmos nomes que, por serem todas espécies de um mesmo gênero – isto é, são todas ciências do discurso –, se estruturam com base nos mesmos princípios.
Dito em outras palavras, segundo o Aristóteles de Olavo, a demonstração do Teorema de Pitágoras e um debate socrático têm os mesmos fundamentos discursivos que uma fala de Tiririca na câmara dos deputados ou que os poemas de João Cabral – o que pode parecer à primeira vista uma ideia muito extravagante, sobretudo quando se considera tanto o controverso desenvolvimento dos estudos aristotélicos especializados quanto a mentalidade predominante do ocidente, que vê, entre um poema e uma equação, uma diferença parecida com a existente entre o joio e o trigo. É o famoso: “não entendo nada de Exatas porque sou de Humanas” e vice-versa. Tal esquizofrenia cultural é justamente o que Olavo, com essa tipologia universal dos discursos, tenta reorganizar e reunificar no que ele chama de uma filosofia aristotélica da cultura.
CAPÍTULO 2 - UM MODELO ARISTOTÉLICO DA HISTÓRIA CULTURAL
Nesse segundo capítulo, Olavo explica que a mesma teoria pode ser utilizada como modelo de descrição da evolução histórico-cultural das civilizações: é o princípio de sucessão dos discursos dominantes.
No caso do Ocidente, por exemplo, podemos dividir a história cultural em quatro grandes períodos: 1) o da poesia épica de Homero e Hesíodo, em que predominava o discurso mito-poético; 2) o da dissolução do politeísmo grego como religião pública, concomitante ao nascimento da retórica; 3) o do fim da democracia grega, causando o desaparecimento da retórica prática; e a subsequente instauração gradual da dialética como a forma, por excelência, do método filosófico nas universidades medievais; e, por fim, 4) o da Modernidade que, com o avanço das ciências naturais e da matemática, chega no século XX com a lógica-matemática sendo considerada o discurso definitivo da classe científica.
Uma evolução parecida pode ser vista também na civilização islâmica. Enfim, não é de se admirar que essas ideias sejam encontradas in nuce na filosofia de Aristóteles, que foi o fundador mesmo da disciplina História das Ciências.
CAPÍTULO 3: PRESENÇA DA TEORIA ARISTOTÉLIA DO DISCURSO NA HISTÓRIA OCIDENTAL
Foi a fim de esclarecer os confusos rumos tomados pelos estudos aristotélicos ao longo do tempo – por sinal, já mencionados no primeiro capítulo – que Olavo concebeu este. Afinal, a unidade da obra de Aristóteles não foi reconhecida durante boa parte de uma longa história que se passou mais ou menos na seguinte ordem de acontecimentos:
- 1) Andrônico de Rodes edita, excluindo do Organon a Poética e a Retórica, o corpus aristotélico, que toda a posteridade copiou.
- 2) A Poética fica desaparecida ao longo de toda a Idade Média, só tendo sido recuperada no Renascimento, o que fez com que a intelectualidade dessa época ignorasse o papel decisivo da imaginação no processo cognitivo, explorado na poética.
- 3) A Retórica, por ter sido excluída do Organon também, quase não teve interesse filosófico no mesmo período, sendo utilizada apenas para fins práticos de oratória.
- 4) Com o Renascimento vem a Filosofia Moderna que reduz o mundo sensível inteiro à matemática, criando uma forte oposição à epistemologia aristotélica, um verdadeiro anti-aristotelismo.
- 5) No mesmo período a Poética é recuperada e passa a ser utilizada como referência só no campo das Artes – nas Ciências, Aristóteles já tinha sido rejeitado –, aumentando ainda mais o abismo entre discurso poético e discurso lógico-científico.
O resultado foi a consolidação de um Aristóteles esquizofrênico: de um lado, apóstolo-fundador da razão silogística, de outro, apreciador extático de teatro e poesia; de um lado, o Aristóteles de Exatas, de outro, o Aristóteles de Humanas. Esses e outros posteriores desenvolvimentos histórico-culturais foram fragmentando e camuflando cada vez mais quaisquer resquícios de unidade presentes na concepção aristotélica do conhecimento humano e da cultura. Unidade essa que não é senão o que Olavo busca recuperar nesse livro.
CAPÍTULO 4 - A TIPOLOGIA UNIVERSAL DOS DISCURSOS
Depois de explicitar a Teoria dos Quatro Discursos nas obras de Aristóteles, neste capítulo, Olavo faz dela uma demonstração a priori, para provar que além de existente, ela está correta e vale a pena ser estudada.
Ele basicamente argumenta que, para que qualquer discurso exista, é necessária uma hierarquia de credibilidade vertical que vá do maximamente crível – o certo e verdadeiro – ao minimamente crível – o meramente possível. Isto é, sempre que falamos alguma coisa a alguém (inclusive a nós mesmos), pretendemos que ela faça algum sentido, que ela contenha algum grau de verdade, podendo variar desde o improvável ao indubitável. Mas entre esses dois polos extremos, entre mínima possibilidade e a verdade absoluta, existe algo. E assim abre-se um plano horizontal de duas outras gradações de credibilidade: o verossímil – que é mais crível do que o possível – e o provável – que é ainda mais certo, porém, menos confiável do que a verdade inerrante. Dos princípios gerais do discurso, portanto, foi deduzida sua tipologia universal que corresponde às quatro ciências aristotélicas do discurso:
- 1) a poética – domínio do meramente possível;
- 2) a retórica – domínio do verossímil;
- 3) a dialética – domínio do provável;
- 4) e a lógica – domínio do maximamente certo;
CAPÍTULO 5 - MOTIVOS DE CREDIBILIDADE DOS DISCURSOS
Neste capítulo Olavo apenas explora mais pormenorizadamente a estrutura de cada um dos quatro de discursos em função do tipo de credibilidade que cada um busca provocar no ouvinte.
I) Poético: a credibilidade está relacionada à força de sugestão onírico-imaginativa. O ouvinte do discurso poético suspende o seu julgamento para que entrar no mundo de fantasia que o contador de histórias propõe. Assim, por mais irreal que seja esse mundo, o ouvinte o vivencia como se fosse a própria realidade, feito o que acontece quando sonhamos; sendo possível mesmo, extrair desse discurso lições bastante razoáveis para a vida, pois seu tipo de verdade é antes simbólico que científico. Aqui estão os poemas de Cabral.
II) Retórico: diferentemente do poético, em que o ouvinte tem que suspender o seu julgamento crítico para poder entrar no mundo imaginário proposto, o discurso retórico quer fazer o ouvinte tomar uma decisão imediata, julgando a verossimilhança da narrativa contada. Nesse sentido, portanto, o discurso retórico não pode ser meramente possível, mas tem que ser também verossímil. A narrativa tem que parecer ter acontecido de facto, ainda que não tenha. Por isso, nas técnicas de retórica antigas os oradores estudavam também as pré-disposições do público ao qual se dirigiam, seus sentimentos em comum e tipos de mentalidade, para que assim conseguissem dirigir a vontade do público para tomar certas decisões com base em uma narrativa que lhes soasse verossímil. O discurso retórico, portanto, é o do convencimento prático, por isso, inclusive, muito presente na esfera da política. Aqui está o discurso de Tiririca.
III) Dialético: percebe-se que, conforme a hierarquia dos discursos sobe do minimamente ao maximamente crível, menor é a confiança que o público tem que ter no orador, maior na própria percepção da verdade. No caso do discurso dialético, o único comprometimento que o ouvinte tem que ter é com a sua capacidade racional de acompanhar o discurso. Ao invés ceder à condução do poeta ou do político, quem conduz é a razão do interlocutor. Nesse nível duas coisas são imprescindíveis: 1) a honestidade intelectual e 2) um terreno cultural comum entre orador e ouvinte, a partir de onde se possa iniciar o discurso sem que haja divergências com relação aos princípios que o guiam. Ao contrário do que acontece na retórica, a vontade posterga a decisão para se submeter à razão calma e investigadora. A única coisa que importa é buscar a verdade da forma mais razoável e provável. Aqui estão as discussões socráticas.
IV) Lógico-analítico: este discurso se constitui com base em premissas já aceitas como verdadeiras a partir de onde se deduzirão conclusões também certas e verdadeiras segundo as leis da lógica: é o ideal da ciência. Esse tipo de discurso só costuma acontecer em duas situações: 1) em meios científicos, onde a plateia tem domínio do vocabulário lógico e específico do orador para poder acompanhar suas deduções; ou 2) na situação em que as premissas do discurso são muito gerais, de modo que uma plateia mais ampla consiga acompanhá-lo. Além disso, sobretudo quando dirigido a um público mais especializado, é comum que aconteça uma aceitação das premissas sem julgamento crítico, para que o orador tire todas as conclusões e “mostre onde quer chegar”. Daí em diante, a tarefa é a análise dialética do argumento para testá-lo, fazendo o máximo de esforço crítico, a fim de botar a toda prova sua veracidade – algo que pode ser muito desconfortante a uma plateia não habituada com esse “vai e vem” dialético-científico. Aqui está a demonstração do Teorema de Pitágoras.
CAPÍTULO 6 - MARCOS DOS ESTUDOS ARISTOTÉLICOS NO OCIDENTE
Diante dos estágios mais importantes da evolução dos estudos aristotélicos no ocidente, Olavo apresenta algumas questões que foram essenciais à formulação final da Teoria dos Quatro Discursos, no sentido de recuperar o papel de cada uma das quatro ciências do discurso na unidade da filosofia aristotélica.
Primeiramente, sabe-se que Aristóteles desde muito novo já utilizava seu método de investigação dialética, o significa que provavelmente ele foi concebido mais ou menos na mesma época da Retórica, que é obra de juventude; o que explicaria a íntima relação que Aristóteles afirma terem essas duas ciências, considerando a dialética um aprofundamento teórico da retórica e esta uma expressão política daquela. Além disso, é claro que, sem a devida valorização da dialética no sistema aristotélico das ciências, sua filosofia cairia em um formalismo lógico vazio.
E, mais do que isso, Aristóteles, para que fosse coeso consigo, teria que exigir uma homologia perfeita entre a estrutura de sua filosofia e sua epistemologia. Ou melhor dizendo, é condição sine qua non da coerência interna de qualquer filosofia que a obra do próprio filósofo – o registro escrito de seu conhecimento – seja compatível, ao menos analogamente, com a descrição que ele faz do conhecimento humano.
Nesse sentido, é necessário não só que a dialética e a retórica sejam valorizadas cientificamente, Nesse sentido, é necessário não só que a dialética e a retórica sejam valorizadas, mas que o discurso poético também o seja, já que ele corresponde justamente à função imaginativa da alma, sem a qual, de acordo com o próprio Aristóteles, a razão não pode exercer sua função senão como uma matraca de flatus vocis. Ou seja, assim como o processo do conhecimento começa pelas coisas concretas e termina nos conceitos abstratos, o discurso, inevitavelmente, vai desde a poesia imaginativa à lógica pura da ciência. Há um claro espelhamento estrutural entre a epistemologia aristotélica e os quatro discursos.
CAPÍTULO 7 — NOTAS PARA UMA POSSÍVEL CONCLUSÃO
Neste último capítulo, o véio da Virgínia esclarece em mais detalhes os motivos filosóficos que justificam sua busca por uma estrutura unitária que subjaz de modo implícito à filosofia de Aristóteles, isto é, sem estar presente explicitamente nos seus escritos. Quer dizer, porque alguém, diante de uma das obras mais geniais da história da humanidade, se permitiria ainda, para além da já difícil compreensão dos textos, especular as secretas intenções inconfessadas do autor que se escondem por baixo dos panos?
Em primeiro lugar, diz Olavo, a verdadeira unidade de uma filosofia nunca pode ser encontrada, de fato, declarada em sua obra. Ela é o princípio norteador que o autor tem em vista quando escreve e que, portanto, só se revela como tal “antes do começo e depois do fim”. É como o trajeto de uma viagem que, se para o motorista na estrada só se revela parcialmente, quando visto no GPS, que o abrange e o transcende, se manifesta, aí sim, em sua forma total. No caso da Filosofia, a unidade da obra, pelo mesmo motivo, é invisível na letra do filósofo, mas se torna patente na estrutura geral de seu pensamento, no seu modus exponendi et argumentandi. Unidade essa que, no fim das contas, é a forma mentis do filósofo.
Em segundo lugar, no caso específico de Aristóteles, ainda existe o fator esclarecedor de que toda a estrutura de sua obra é baseada na ideia de unidade do diverso. E não é de outro modo que deve ser entendida a unidade de sua filosofia. Um exemplo pode ser visto na própria epistemologia. De acordo com o Estagirita, o conhecimento humano começa inevitavelmente na apreensão imediata dos entes corpóreos pelos sentidos, passando pela condensação desses entes em imagens na memória, que depois são abstraídas progressivamente até chegarem à universalização linguístico-conceitual do logos, estruturando racionalmente, por fim, os próprios dados sensíveis que lhe deram origem. Em outras palavras, o processo pelo qual o homem conhece não é senão uma atualização da razão, já existente em potência na realidade sensível, em direção à inteligibilidade cada vez mais abstrata dos conceitos. Esse processo acontece, portanto, de forma maximamente orgânica, já que, assim como a razão é conhecimento in fieri, as coisas o são in nuce. Ou seja, a razão se constitui, de forma gradual e contínua, a partir da realidade que ela mesma interpreta, sem nunca, porém, alcançar em definitivo a plenitude do conhecimento apodítico, pois perderia suas raízes sensíveis no real.
Dito de outro modo, não se trata aqui de uma unidade estática, rígida, mas orgânica e dinâmica, sempre em busca de um ideal sistemático e perfeito do saber, que nunca, porém, é alcançado em definitivo. Caso contrário, o conhecimento cairia no abstracionismo da lógica puramente formal, cortando sua conexão com o particular que o fundamenta. Da mesma maneira, sem o discurso poético, o analítico, desprovido de referências concretas, se torna vazio. A unidade é cíclica, vai do particular ao universal e depois volta dos conceitos para as coisas a fim de verificá-los empiricamente.
Essa epistemologia não deve ser entendida, portanto, como “equivalência estática das partes, mas sim como tendência, através do diverso, a uma finalidade que tudo abrange, explica e redime”. O mesmo serve para a unidade da obra Aristotélica como um todo, e, inclusive, para os quatro discursos, que são diversos na unidade fundamental do logos humano.
Por fim, é por isso que Aristóteles tem o método lógico-analítico como referência científica, mas nunca o usa em suas próprias obras, preferindo o método dialético. É por isso que ele constata a universalidade inevitável do conhecimento, ao mesmo tempo que o busca sempre hic et nunc, nos particulares sensíveis. É por isso que, sem a Poética e a Retórica, o Organon perde boa parte de seu valor. E é por isso que para ele Deus é a realidade suprema, ao mesmo tempo em que a única coisa que existe concretamente é o mundo corpóreo, a substantia prima.
Aristóteles, não por acaso, se tornou depois o mestre predileto dos pensadores cristãos: essa articulação do universal com o particular já é o prenúncio do mistério da Encarnação. “A devoção ativa à suprema ciência, à sabedoria infinita, é, em última instância, a essência de toda verdadeira filosofia e de toda verdadeira religião”.
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