Por: Bruno Fontana
07/06/2022

Transforma-se o amador na cousa amada - Camões
Transforma-se o amador na cousa amada, por virtude do muito imaginar; não tenho logo mais que desejar, pois em mim tenho a parte desejada. Se nela está minha alma transformada, que mais deseja o corpo de alcançar? Em si somente pode descansar, pois consigo tal alma está liada. Mas esta linda e pura semidéia, que, como o acidente em seu sujeito, assim co’a alma minha se conforma, está no pensamento como idéia; [e] o vivo e puro amor de que sou feito, como matéria simples busca a forma.
1º e 2º quartetos – Camões começa o famoso poema "transforma-se um amador na cousa amada" dizendo que aquele que ama, tanto pensa e imagina a coisa amada que acaba por se esquecer de si e “transformar-se” no objeto desejado. De fato, alguma vez na vida todos já passaram pela situação de sentar-se em um ônibus e viajar tanto na estrada quanto na maionese, vendo sem ver as paisagens da janela por contemplar imaginativamente uma bela moça, um belo objeto, uma bela lembrança. Esse fluxo imaginativo às vezes é tão intenso que os devaneios como que se fazem efetivamente presentes, e a “parte [platonicamente] desejada” deixa de sê-lo por estar diante de nós, por integrar profundamente a nossa consciência: “se nela está minha alma transformada, que mais deseja o corpo de alcançar?”
1º e 2º tercetos – Não acabei de usar um advérbio filosófico à toa. A segunda metade do poema tem forte teor metafísico: o grande vate português, “que enxergava mais com um olho do que nós todos com três”, faz aqui uma ousada mistureba poética de Platão e Aristóteles. A coisa amada nunca é um mero objeto físico; pelo amador, ela é vista com tal graça e perfeição que se torna quase um arquétipo platônico, um ente metafísico do famoso Mundo das Ideias, uma “semidéia” que “está no pensamento como ideia”.
Já em termos aristotélicos, ela pode ser comparada tanto a um aspecto, ou “acidente”, que faz parte do meu ser “por virtude do muito imaginar”, quanto ao conceito de forma substancial: aquilo sem o que o amador, como matéria, não pode existir. Para Aristóteles tudo quanto existe é composto de forma (estrutura essencial) e matéria, uma casa pode ser feita de madeira, vidro, cimento, tijolo…, mas só será, de fato, uma casa se o material que a constitui estiver estruturado na forma de uma casa. Caso contrário não passará de um amontoado de madeira, vidro ou tijolo. O que Camões quer dizer, portanto, é que a coisa amada é o que dá forma e sentido à existência de quem ama, confere-lhe, em suma, razão de ser. Ao típico vagabundo cachaceiro, basta uma Beatriz que lhe esquente o coração para que ele se recomponha como homem e encontre uma luz no fim do túnel em meio à selva escura de sua vida.
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