Por: Marcelo Pichioli da Silveira
26/05/2022

Estatuto ontológico do embrião
O que é um estatuto ontológico do embrião? Preliminarmente, vale explicar qual é o objeto central deste estudo. Do ponto de vista jurídico, o vocábulo “estatuto” geralmente remete à ideia de regulamentação normativa [1], i. e., de diploma normativo. A pretensão deste texto, porém, não é político-legislativa. Aliás, o termo “ontológico”, posto ao lado de “estatuto”, serve justamente para dar ênfase à noção de ser, em vez de dever ser.
Escrever sobre o estatuto ontológico do embrião, assim, desemboca num esforço teórico a respeito de seu estado ou de sua condição: o que é, de fato, o embrião, a quididade do embrião. Trata-se duma especulação filosófica a respeito de qual seja o estado do embrião, sua situação na tábua geral da gnosiologia. Como consta do diálogo platônico Fédon, é também socrática a tese segundo a qual a argumentação tem de respeitar a verdade e as coisas que são [gr. τῶν δὲ ὄντων τῆς ἀληθείας τε καὶ ἐπιστήμης; pt. “verdade e conhecimento das coisas que são” [2]].
“Estado”, aqui, é vocábulo empregado em sentido diverso daquele geralmente usado em teoria política [gr. Πολιτεία; fr. État; it. Stató; lat. Respublica etc.]. Aliás, Nicola Abbagnano traz a palavra “Estado” duas vezes em seu Dicionário de Filosofia, colocando números arábicos para bem diferenciá-los em seções distintas: Estado¹ e Estado². O primeiro, que não nos interessa, tem aquele sentido teórico-político; o segundo [lat. status; in. State; al. Zustand etc.], este sim, traz a posição linguística do artigo. É a “condição, modo de ser ou situação”, noção que se aproxima de essência das coisas [al. Sachverhalto; ing. state ofaffairs] [3].
Aproximo-me, pois, àquilo chamado por Aristóteles de categorias [gr. Κατηγορίαι; lt. Categoriae], jornada filosófica tendente a enumerar de tudo o que possa ser a substância, bem como tudo o que possa ser-lhe inerente — há dez categorias. Na sua interpretação da Suma, Michel Villey identifica, aí, o “cerne da lógica” na filosofia tomista: avança-se do conhecido para, então, seja possível explorar o desconhecido, sendo justamente esta a tendência de Aristóteles no Organon:
Chegamos ao cerne da lógica: a lógica tem, sobretudo, o papel de considerar e reger os passos da “razão” propriamente dita: em sentido estrito, “Razão” difere de “intelecto”. O intelecto compreende, “lê dentro” das coisas (intus-legere) o que nelas vê de inteligível. A Razão (que mais tarde os racionalistas incidirão no erro de tratar como fonte de conhecimento) não passa de instrumento; que regula o movimento de uma proposição para outra, de uma intelecção para outra (cf. Iª, qu. 79, art. 8). Seu lugar específico é o discurso.
4. O terceiro ato da Razão está de acordo com aquilo que é próprio da razão, o discurso que vai de uma coisa a outra, para que do que é conhecido se chegue ao conhecimento do desconhecido. Com esse ato relacionam-se outros livros do Organon.
4. Tertius vero actus rationis est secundum id quod est proprium rationis, scilicet discurrere ab uno ad alliud, ut per id quod est notum deveniat in cognitionis ignoti. Et huic actui deserviunt reliqui libri Logicae [4].
Essa “decantação gnosiológica” recai também na conduta humana, que opera intelectualmente para finalidades. No bom exemplo de S. K. FR. Austin Fagothey, quando a pessoa atravessa A para chegar a B, B para chegar a C, C para chegar a D, ela deve — a menos que esteja agindo de forma aleatória e irracional —, primeiramente, ter o desejo de chegar ao ponto D. Depois, descobrirá que o caminho até D supõe atravessar C depois de B e B depois de A. O planejamento (intenção) está na ordem inversa de sua atuação (execução). O que é o primeiro na intenção é o último na execução, e vice-versa [5]. Assim os passos são os seguintes:
Tal assertiva é importante para compreensão adequada da dignidade humana em Tomás de Aquino, já que ele enfatiza o modo especial de ser das pessoas, que se identifica como existir-por-si e compreende a individualidade. Com efeito, o sistema tomista parte da premissa segundo a qual o ser humano tem uma “mente intelectiva” (tradução de intellective mind, termo usado por Jason T. Eberl [6]).
Este modo de ser das substâncias racionais, que se diz ser o mais digno de todos (dignissimus) implica o autogoverno (dominiumsui), ou seja, a independência no agir (STh, I, q. 29, art. 1), pensando e querendo [7]. É daí que deriva a adaptação da sentença de Boécio por Tomás: o primeiro, em seu Contra Euthychen et Nestorium, definiu pessoa como “naturae rationabilis indiuidua substantia” [8] (tradução usual: “substância individual de natureza racional”) [9]. A partir do aristotelismo [10], Tomás acrescenta: “persona significat id quod est perfectissimum in tota natura, scilicet subsistens in rationali natura”, ou seja, “pessoa significa o que há de mais perfeito de toda a natureza, i. é, o que subsiste em a natureza racional” [11]. Esta definição tomista de pessoa é fundamental para a compreensão do ser humano segundo o sistema filosófico tomista, valendo salientar, ademais, que sua proposta abrange não só essa questão substancial, mas também a composição de uma alma imaterial que informa um corpo material, de maneira que uma pessoa jamais será idêntica a outra (sempre há diferença na substância imaterial e espiritual), havendo autores que também falam de uma “animalidade” como elo fundamental para a natureza humana de acordo com Tomás [12].
A estrutura da realidade é vista, em Aristóteles, como [1] ato e potência; [2] matéria e forma; e [3] substância e acidente.
Ato é ser ou operar. Potência é possibilidade de ser ou de operar. Um ser humano pode, assim, celebrar contratos verbais, já que falar e aquiescer constituem expressões e potencialidades inerentes ao ato de ser humano [13].
Matéria é a morada da potência na medida em que ela tem potência para assumir novas formas. Forma é correspondência de ato, que é princípio de operação ou princípio de inteligibilidade. A forma é o ato. Todos os entes que estão em ato, estão de acordo com as formas que lhe sejam específicas.
Finalmente, a substância [οὐσία] é uma categoria fundamental do ser, a ser designada noutras nove categorias. Acidente é tudo aquilo que inere na substância sem alterá-la. Pense-se num embrião humano: sua substância é de pessoa humana: não importa se em fase com x ou y células durante clivagens [quantidade | ποσόν = acidente que não altera a substância], se tem ou não cor banca, preta, parda ou amarela [qualidade | ποιόν = acidente que não altera a substância, i. e., a humanidade]; se está ou não implantado no útero [lugar | ποῦ = acidente espacial — estar aqui ou ali não desfaz seu substrato ontológico]; se tem 1 segundo ou 9 meses [tempo | ποτέ = mero acidente do ente]; se tem ou não formação completa de alguma estrutura cognitivo-neural [hábito | ἔχειν = acidente da substância] etc. A substância, assim, “sub-está” em relação aos seus acidentes. Ainda que pareça seguir premissas diferentes, André Gonçalo Dias Pereira, a respeito do assim chamado “diagnóstico genético pré-implantação (DGPI)” (art. 29.º, n.º 1, da Lei Portuguesa n.º 32/2006, de 26 de julho), escreveu:
Ainda antes da implantação, a lei regulamenta o destino do embrião, com uma preocupação terapêutica, seja para evitar o nascimento de uma criança com uma grave doença ou, de forma muito controversa, para admitir a gestação do chamado “bebé-medicamento”. Apesar desta abertura, o princípio é o de que o embrião in vitro – como vida humana que é – merece já o respeito e a tutela da ordem jurídica [14].
Note-se que, por lógica, o ato tem de ser anterior à potência. O ato tem um horizonte de possibilidades: são suas potências. Um embrião (ato) tem uma variabilidade potencial, estudada, p. ex., pela embriologia. No entanto, só se pode falar de potências dum ato que exista anteriormente. Isso não quer dizer que a “alma racional” do “corpo material” estejam separados. Na verdade, é justamente a unidade intrínseca da matéria e da forma substancial (corpo e alma) que é responsável pela existência unificada de um ser humano [15].
Aos três binômios aristotélicos, Santo Tomás de Aquino trouxe outro: essência e ser. Sendo cristão, aduz que essência de Deus, ato puro (causa incausada; motor imóvel), é ser. Este que vos escreve não pode dizer o mesmo: minha essência é humana, circunscrita que é pelo conjunto de possibilidades que estão na forma de ente humano. Só Deus abarca, a um só tempo, o ser e a essência. Fora de Deus, não há ente que consiga dar criação a si mesmo. Se Aristóteles via na forma o ápice do ser, Tomás de Aquino, inovando, passa a ditar que o ser é aquilo que está para todas as formas.
A consequência prática mais drástica desta guinada tomista é a de impor uma gradação ontológica de tudo o que há no mundo, a ser medida pela qualidade do ente. Tomás de Aquino passa a afirmar que o ente é aquilo que tem ser (ab + esser), mas não é o próprio ser. O ente é tudo aquilo que é limitado, sendo a forma o seu próprio limite. Nenhum ente poderia operar além das potencialidades impregnadas em suas formas (um cachorro jamais poderia celebrar um contrato, por exemplo).
Daí sucede uma postura intelectual bastante diferente para leitores acostumados aos relativismos da modernidade: um nivelamento entre aquilo que se vê (objeto) e aquele que estuda (sujeito cognoscente). Os escolásticos dão ênfase ao verbo inteligir, i. e., “ler interiormente”, sendo o conhecimento intelectual capaz de penetrar até a essência das coisas [16], ou, no linguajar de Platão, uma apreensão pela inteligência [17]. O Direito também foi caudatário deste verniz teórico, sobretudo com o jusnaturalismo clássico. O intelecto do jurista, aqui, tem de ler dentro das coisas [lat. intus-legere] [18].
Por direito natural não se deve entender algo como “imutabilidade normativa”, nem como um tipo “moralidade supralegal”. Cito três razões para tanto: i) isto faz do jusnaturalismo clássico um espantalho; ii) isto é expediente retórico para desqualificá-lo; e iii) o direito natural simplesmente não pode ser visto como “imutável”, nem como amontoado de esquemas de “moralidade”.
A Metafísica grega e escolástica — e, em particular, aristotélica e tomista — é a chave para entender-se o que seria uma norma segundo um jusnaturalista. Diferentemente das propostas modernas e próprias do positivismo, sustentadas num ato externalizado ou imposto humanamente [v. g. ato de vontade, em Hans Kelsen [19]; pressão social séria, em Herbert Lionel Adolphus Hart [20]], Aristóteles via nas leis uma qualidade própria das coisas. O âmbito normativo, assim, teria fundamento na causalidade final dos objetos.
Dado o exemplo, vejamos o embrião como categoria aristotélica e tomista. Antes de avançar-se, é importante frisar que tudo o que segue abaixo é uma decantação de princípios já bem conhecidos por estudiosos tomistas, tanto que serviram de base para a Igreja Católica para abordagem de variados assuntos da bioética. O assunto, porém, segue desconhecido para muitos outros estudiosos menos próximos da abordagem deste trabalho [21].
É comum dizer-se que o embrião seria, quando muito, “vida em potencial” [22]. Em termos aristotélicos, contudo, a afirmação merece revisitação. A rigor, o embrião é vida em ato. Todo ente determinado é mescla de potência e ato enquanto submetido ao devir. O embrião está incluso aí. Ele obviamente está em potência para os próximos passos de seu desenvolvimento, mas também está em ato para seu estado atual. Sendo assim, não é de todo incorreta a afirmação de que o embrião está em potência: há uma potencialidade para as vindouras etapas da organogênese. No entanto, tais potencialidades não desfazem a magnitude de vida em ato na figura do embrião. Por exemplo:
i) o bloco de mármore é ato, do qual poderá suceder-lhe uma estátua (potência);
ii) se for o caso, a estátua do mármore será ato, a qual poderá novamente ser reduzida a pó (potência);
iii) o pó do mármore (ato) pode ser reaplicado, p. ex., substituindo a massa corrida (potência) – e assim sucessivamente.
Adaptados os termos aristotélicos para o campo da embriologia humana, teríamos o seguinte:
i) com a fertilização, há vida em ato, sobrevindo então o zigoto (potência);
ii) o zigoto, uma vez formado, é zigoto em ato, sendo as clivagens seguintes as potências do zigoto [23];
iii) após a primeira clivagem, o ser tem duas células (ato), com potência para lograr um total de quatro células após a segunda clivagem;
iv) após as clivagens, o ato passa ser chamado “mórula”, donde advirá o blastocisto (potência) – e assim sucessivamente.
Daí decorre uma constatação: o embrião, vida em ato, passa por uma série de acidentes que consubstanciam suas potências — não pode ser “vida em potencial” porque, se fosse, teria de alterar sua própria substância, algo evidentemente inocorrente [24]. Do ponto de vista tomista, a colocação de Carlos Alberto Bittar é perfeita: “sendo a pessoa a união entre o elemento espiritual (alma) e o elemento material (corpo), exerce este a função natural de permitir-lhe a vida terrena: daí porque, em sua integridade, deve ser conservado e protegido na órbita jurídica” [25]. Aliás, afirma-se até que Santo Tomás de Aquino “já admitia, na Suma Teológica, o transplante de partes extraídas de animais. Justificava com o princípio de que as coisas imperfeitas subsistem por causa das coisas perfeitas. Por desígnio da vontade Divina era lícito o uso das plantas em favor dos animais, e dos animais a favor do homem, com exceção das glândulas gerativas, porque a operação resultaria degenerativa da espécie e atentatória ao D[ireito] natural e à moral” [26].
A questão central passa a ser é a seguinte: o embrião humano, visto como vida em ato, pode ser “objeto” de negócios jurídicos? É importante frisar, antes de tentarmos esboçar alguma resposta, que “objeto”, aqui, quer dizer algo mais restrito que, p. ex., um “objeto epistêmico”. O objeto do negócio jurídico não seria exatamente a mesma coisa que o objeto da teoria do conhecimento. De algum modo, a primeira metade deste texto foi uma tentativa de vislumbrar o embrião como objeto da gnosiologia: segundo o próprio Tomás de Aquino, cujo aristotelismo lhe é peculiar, a maneira mais adequada de estudar a natureza humana é começar com os objetos que formam nosso ambiente, aí inserido, particularmente, os seres humanos que podemos tocar, ver, ouvir e cheirar [27].
Doravante, portanto, o problema passa a ser diferente e dogmático-jurídico, bifurcado em duas perguntas: 1.ª) o objeto do negócio jurídico pode envolver os acidentes do embrião humano?; e 2.ª) inserir o embrião como objeto de negócios jurídicos não seria sua coisificação? A pista para responder-se intrigantes perguntas passa por algo sintetizado pelos jusnaturalistas: só pode haver florescimento humano se suas capacidades “materiais” forem definidas pelas vias da virtude [28].
Daí sucedem derivações variadas, a serem exploradas em outro texto.
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Sobre o autor
Professor. Mestrando em Direito Negocial e Biodireito pela Universidade Estadual de Londrina/PR. Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá/PR. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro/RJ). Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro/RJ). Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Parecerista da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro) e da Revista Eletrônica de Direito Processual (REDP). Membro do Conselho Editorial da Editora Thoth (Londrina/PR). Editor, escritor e produtor do Resenha Forense.
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