Por: Lucas Emmanuel Placa
08/07/2022

História das ideias linguísticas - A gênese da Linguagem Retórica e Poética
I Algumas confusões comuns
Para iniciarmos nossa investigação histórica do desenvolvimento das ideias linguísticas, devemos pontuar alguns poucos elementos relevantes na questão historiográfica. Ambos os conceitos (ideia e linguística) estarão sendo usados de modo provisório em razão da historicidade evidente de cada um deles. Tanto a ideia quanto os fatos linguísticos são conceitos elaborados em contextos históricos de diferentes épocas e por diferentes pensadores. Seria impossível mencionar, em realidade, conceitos puramente linguísticos em cenários onde sua descoberta e criação científica ainda não havia sido feita. Equivaleria examinar os escritos do antigo Testamento a partir da técnica tipográfica do Renascimento, ou mesmo examinar as ideias platônicas pelos conceitos da psicologia behaviorista. Não há o mínimo sentido em razão do anacronismo em que determinada posição cairia inevitavelmente. Evitar o problema anacrônico significa, a partir desta investigação, alinhar os saberes da linguística moderna para com seu desenvolvimento em notas históricas distantes.
De um ponto de vista geral, pode-se falar de ideias políticas e científicas em períodos onde seus respectivos métodos não haviam sido compilados em manuais didáticos, precisamente pela razão de que tanto as noções analíticas e expositivas das ideias políticas quanto científicas, já estavam germinando no seio de uma comunidade filosófica. São, por isto, diferentes, porém análogos em certo sentido. Podem bem um Aristóteles e Montesquieu tratarem do mesmo objeto científico como o Estado e a Política, portanto, de modo análogo entendem seu objeto como verdadeiro e útil na questão do exame filosófico; farão uso, a partir de outras concepções designativas e semânticas, de outros métodos que não os mesmos. Por isso podemos falar de uma filosofia e, em contrapartida, de uma ciência política. Com a linguagem, tal abordagem pode – e deve – ser a mesma. O objeto científico da linguagem – sua estrutura morfológica, sintática, a denotação e conotação, a fala formal e informal, etc – não difere, em matéria de objeto, da filosofia. O campo de ação da razão do filósofo pode ser o mesmo do campo científico – mesmo porque a história de qualquer ciência moderna apresenta suas notas filosóficas. O que as difere são métodos de demonstração e análise.
É certo que estamos em melhor plano ao aceitarmos o conceito linguístico como histórico-analítico, ao manter gleichzeits a consciência de que este foi desenvolvido em períodos diferentes dos que analisaremos. A abordagem cronológica em A History of Philosophy, de Frederick Cospleston, que afirma Tales de Mileto em direção a Platão como a fundação da filosofia propriamente dita, é válida precisamente pelo fato de que estamos conscientes, na leitura da obra, de que Platão e Tales não são filósofos em graus semelhantes, mas que o espírito da filosofia permeava os dois e que somente um deles assumiu a responsabilidade inovadora de buscar manusear a linguagem mito-poética em prol do exame dialético. De igual modo, quero que neste trabalho continuemos cientes de que o termo linguístico não se refere ao produto histórico consagrado pelo pensamento de Humboldt ou Saussure, mas como parte de um processo de descoberta exercido por filósofos e intelectuais ao longo dos séculos – os quais, embora não tenham feito uso de um termo que lhes era certamente estranho, acessaram o tema da linguagem de análoga maneira.
II A gênese da retórica e da poética
Comentamos brevemente de que filósofos e intelectuais acessaram o tema da linguagem. Os primeiros a quem devemos recorrer teriam de ser os Sofistas em razão de terem feito uso demasiado daquilo que hoje chamamos Arte Retórica. Cronologicamente, é aceito a divisão do mundo Antigo que acentua os textos homéricos e hesiódicos como prelúdio à retoriké. Todos estes textos, de caráter mito-poético, fazem uso de uma linguagem que não a dos sofistas e filósofos posteriores. O próprio produzir-se das ideias retóricas e discursivas, no mundo Antigo, deviam sua fundação a partir das epopeias antigas. Isto serviu para o imaginário da sociedade, precisamente enquanto os textos homéricos e dos grandes poetas servem como orientação espiritual da comunidade-política. Não só as ideias ali expostas, mas a linguagem mesma, refluía nos debates entre os intelectuais e eram invocadas as Musas, bem como o caráter de Odisseu, etc. Isso significa dizer que a sociedade helênica em formação, e a civilização grega como um todo, são elas frutos revelados pela tradição homérica – consequentemente, no caso em questão, das primeiras reflexões acerca da retórica.
“οὕτως οὐ πάντεσσι θεοὶ χαρίεντα διδοῦσιν ἀνδράσιν, οὔτε φυὴν οὔτ᾽ ἂρ φρένας οὔτ᾽ ἀγορητύν. ἄλλος μὲν γάρ τ᾽ εἶδος ἀκιδνότερος πέλει ἀνήρ, ἀλλὰ θεὸς μορφὴν ἔπεσι στέφει, οἱ δέ τ᾽ ἐς αὐτὸν τερπόμενοι λεύσσουσιν: ὁ δ᾽ ἀσφαλέως ἀγορεύει αἰδοῖ μειλιχίῃ, μετὰ δὲ πρέπει ἀγρομένοισιν, ἐρχόμενον δ᾽ ἀνὰ ἄστυ θεὸν ὣς εἰσορόωσιν. ἄλλος δ᾽ αὖ εἶδος μὲν ἀλίγκιος ἀθανάτοισιν [...]”
– Homero, Odisseia (167-175) [1]
O trecho da Odisseia de Homero revela-nos uma das primeiras manifestações do espírito humano acerca da linguagem. Em seu estrato particularmente mitológico, nos diz que Júpiter teria enviado a eloquência (ἀγορητύν) aos homens, guiada por Mercúrio, em razão de ter ficado profundamente sensibilizado com a miséria humana[2]. A origem mitológica da linguagem humana vem acompanhada de uma gênese participativa e redentora para com a incapacidade humana de se comunicar – no caso grego, de se comunicar bem. A ἀγορητύν é significada como um dom divino, justificada pela inabilidade humana de usar bem as palavras que lhes são reveladas. Não está claro, a princípio, se a doação divina se dirige à revelação das palavras de igual maneira, mas parece reluzir que o dom das palavras é uma característica fundamental para qualquer ser humano que queira viver melhor e resolver os seus problemas. O diálogo humano é o escopo da ἀγορητύν. Nem todos os homens participam do mesmo dom, entretanto. O mito parece indicar que não somente são poucos os homens que adquirem o dom da palavra, como também são únicos e especiais na esfera da sociedade. Os deuses não podem conceder o presente da fala a todos igualmente, e a razão parece estar fundada na ação prática que a fala desenvolve. Segundo o mito, o homem que detém o poder da ἀγορητύν consegue atravessar a cidade dos homens e se torna notável ao ponto de ser até contemplado como um deus. Certamente ele não se torna um dos deuses do Olimpo e nem um semi-deus através de tal habilidade; mas é daquele homem capaz de articular bem a fala que irá derivar a ordem social. Somente com o poder da eloquência e com o estabelecimento do diálogo, os homens podem vir a se entender e estabelecer um núcleo de orientação na vida ao alinhar seus desejos.
O conceito da eloquência parece ser tão significativo quanto o panorama que o mito mesmo acaba por demonstrar. A civilização grega tinha como importante tudo aquilo que dizia respeito à esfera de ordem social e seu equilíbrio concedido pelos deuses. A vida de participação na política e no cosmos dependia da sua correspondência aos deveres e ações divinas, largamente afetadas pelos contos e poemas antigos. Caberia dizer, neste caso, de que se a Retórica foi objeto de reflexão filosófica somente a partir de Aristóteles, negligenciaríamos aquele profundo cenário histórico que se formou anteriormente. É certo que a Retórica se identificou com a Poesia durante décadas – talvez alguns poucos séculos – enquanto observada pelo ângulo mitológico da eloquência. A poesia é o ordenamento humano das palavras, e a retórica o dom divino imantado na estrutura da fala.
III O caráter Divino versus Antropológico da Linguagem
A manifestação do significado antropológico da linguagem surge nos escritos homéricos através de uma tensão participativa humana e do divino. Infelizmente a representação carece de foco analítico, precisamente pela razão de recorrer a uma linguagem extremamente distante da conceituação e descrição lógica; ao mesmo tempo, o enfoque acentuadamente antropológico da relação, revela a estrutura pela qual o imaginário homérico havia estabelecido para a consagração da arte retórica posterior. Descrever a tensão exige identificar a retórica com a poesia, não como unívocas, mas não-diferenciadas. O recurso retórico pode ser identificado, aqui, como o caráter antropológico da linguagem, enquanto o poético advém e depende em existência e consumação da participação dos deuses na manifestação linguística. É certo que ambas foram fundadas no mesmo mito da inspiração das Musas[3], contudo, a distância entre as duas são aceitas no próprio desenvolver-se da epopeia. A tensão se agrava ao aceitarmos a prerrogativa de ambas se fundarem em inspiração espiritual e se diferenciarem concomitantemente; falamos, além disso, de uma identificação da não-diferenciação, o que significa que, se foram de fato lentamente diferenciadas, não o foram através do processo descritivo dialético, mas pela própria função poética e retórica que se realizava na epopeia. Isto é, em resumidas contas: é preciso aceitar que tanto a arte retórica como a arte poética são iguais e diferentes em concomitância, pois designam caracteres humanos e divinos na valorização da linguagem humana e inspiração divina. A esta categoria de representação deve o caráter de Nestor já na Ilíada:
“ὣς φάτο Πηλεΐδης, ποτὶ δὲ σκῆπτρον βάλε γαίῃ χρυσείοις ἥλοισι πεπαρμένον, ἕζετο δ᾽ αὐτός: Ἀτρεΐδης δ᾽ ἑτέρωθεν ἐμήνιε: τοῖσι δὲ Νέστωρ ἡδυεπὴς ἀνόρουσε λιγὺς Πυλίων ἀγορητής, τοῦ καὶ ἀπὸ γλώσσης μέλιτος γλυκίων ῥέεν αὐδή;” [...]
– Homero, Ilíada (247-249) [4]
Os termos fala doce e voz clara indicam que as características da eloquência já estavam contidas no pensamento grego há muito tempo. Certamente o conceito da retórica dependia, para sua existência, deste prelúdio consagrado pelos deuses.
Ao compararmos os dois textos torna-se claro aos olhos como que se procedia à relação simbólica entre a linguagem divina e humana. Em primeiro lugar, segundo o mito da Ilíada, Nestor – filho de Neleu – tornou-se rei após Héracles assassinar seu pai e todos seus irmãos. Dentre as ações históricas mais conhecidas, destaca-se pela sua participação ao decidir, em um banquete no seu palácio, que os reis aqueus devessem se unir na luta contra Troia. Nestor é retratado como um homem já de muita idade, desde junto aos seus filhos, Antíloco e Trasímedes, ao partir em luta contra os centauros, até o início da guerra propriamente dita. Nestor foi um homem conhecido tanto pela sua eloquência quanto coragem, mas sobretudo pela resiliência aos problemas com que lidava; foi ele quem, segundo diz a história, convenceu Aquiles e Agamenon a fazerem as pazes; e por ser velho demais para embarcar na guerra, liderava, através da fala, a sabedoria dos soldados. Na Odisseia, Nestor permanece sendo o ancião mais sábio e a personagem com que a fala se dirige dos feitos heróicos e conselhos aos mais jovens. Conhecido, portanto, como aquele quem faz bom uso da fala, a característica predominante no caráter retórico de Nestor é precisamente antropológico. A virada antropológica em direção à teofânica só se torna clara na descrição que concedemos primariamente.
Nesta outra, a eloquência só existe ao ser concedida pelos deuses – e os homens se alegram disto. O poder da fala é teofanicamente imantado, capacitando uma pequena quantidade de homens para a orientação socialmente estabelecida. Na Ilíada, a descrição do fenômeno da fala em Nestor é profundamente clara; na Odisseia, a explicação do fenômeno toma um caráter precisamente aórgico, cuja fundamentação humana é aproximadamente impossível de se reter senão através da benção cósmica. Aqui, a explicação analógica do fenômeno linguístico começa a olvidar o elemento antropológico na criação e desenvolvimento da fala – estas, dependentes, da valorização efetiva de seus conteúdos. É neste sentido onde a tensão participativa, entre homem e deuses, através da gênese e frutos linguísticos, se demonstra tão complexa. As questões já sobem em primeiro plano: a) por que razão a pessoa de Homero teria se preocupado em salientar o fenômeno linguístico como fundado pelos deuses? Além disso: b) caso se confirme que a estrutura descritiva e explicativa do fenômeno tinha como escopo a relação humano-divina como relevante na investigação, em qual medida o homem cria a linguagem e, em qual medida ela é concedida pelos deuses? Ambas perguntas são felizes, mas carecem – inevitavelmente – de qualquer resposta. O tão chamado problema homérico é mais profundo do que qualquer investigador poderia conceber; a própria pessoa de Homero nos é incerta. Para fora disso, mesmo a linha que poderia nos ajudar a medir a capacidade humana de criar a linguagem e de recebê-la dos deuses não nos é analiticamente exposta na Ilíada e Odisseia.
O que está claro é de que a relação foi percebida, ainda que ofuscada pela declamação mitológica e descrição dos fatos históricos. A grande vantagem do estilo mito-poético encontra-se na possibilidade de transitar a consciência dos princípios para uma área da existência que não os exige. Embora a esfera dos princípios elencados na ação propriamente humana e divina da criação e desenvolvimento linguístico tenham sido percebidos, não foram diferenciados. É daí que emerge nossa dificuldade atual em conceber as estruturas da retórica e poética tão unívocas quanto separadas. O estilo e linguagem homéricas são, para tanto, a fundação de ambas percepções linguísticas que consagram, mais tarde, o nascimento das mesmas como artes da persuasão e da declamação.
IV. Άγορητύν και Τέχνη ρητορική
A partir do conceito da eloquência (ἀγορητύν), a linguagem humana é simbolizada como o núcleo de recepção expressiva concedida pelos deuses. Não somente o homem individual, mas a sociedade-política mesma, dependem da existência de um legítimo orador que possa declamar os temas da existência; este homem deve, além de tudo, ter coragem e sabedoria de modo a que seja resiliente quanto aos problemas do mundo. O grau de importância da eloquência se demonstra relevante na medida em que percebemos ao que ela se dirige: orientar e ordenar os grupos humanos em determinada situação. O bem falar, na situação greco-helênica, significava mais estruturar a fala para o mantimento da ordem social do que belas declamações. Neste sentido, a eloquência acompanha intimamente a estratégia de guerra, o poder de convencimento, a gramática e o discurso propriamente dito. Os diálogos internos que ocorrem nas instituições devem ser reorientadas pelo senso de concordância; e para isso, o exercício retórico era não mais que substancial para a sobrevivência e continuidade social. A educação de Aquiles foi a “de ser bom falador de palavras e operador de ações. A educação tinha por fim fazer do educando um bom conselheiro, um bom realizador de façanhas”[5]. Isso não significa senão que os reais agentes da sociedade-política tinham por necessidade o hábito de saber fazer as coisas tanto quanto sabem dizê-las. O senso prático deveria, a rigor, seguir-se à fala – e vice-versa.
Da eloquência deriva os saberes e ideais éticos. Segundo a historiografia mais recente, parece ser verídico que a educação grega antiga, por volta dos séculos VI-V a.C, compunha-se de dois aspectos de ensinamento: técnico e ético. A téchne retoriké derivava não apenas de lições retóricas – ou declamatórias, se preferirmos a terminologia mais precisa – como também de exercícios éticos a partir da fala. Em realidade, a própria técnica retórica era vista como meio para se atingir a ἀρετή (aretê), o modelo de vida prática seguido pelos antigos professores de retórica. A aretê é comumente traduzida por “virtude” ou “excelência”; neste contexto histórico, a técnica retórica acompanhava ambos sentidos supracitados. Quando se percebe que tal técnica também seguia o aspecto prático da vida e o mundo de ideais éticos, torna-se claro as razões dos próprios gregos enxergarem-nas mais do que exercícios declamatórios. Aqueles exercícios, todos de retórica, lecionados por homens mais velhos, tinham para os mais jovens – e a sociedade mesma – como tópicos, mitos e exemplos de vida prática de como atingir a excelência na vida. A ética, valor mais que moral para os gregos, acompanhava a virtude da fala e da própria língua.
Tendo em vista que a sociedade-política consegue enxergar como necessário a aptidão para o bom uso da linguagem, a eloquência participa ativamente da vida prática. Embora o conceito político e institucional da retórica não tenha sido desenvolvido por Homero ou pela sociedade de então, aquele já era entendido como fundamento discursivo dos mitos e da realidade histórica; era o modo da linguagem per se, cuja preocupação, a não ser em tempos posteriores, não se calcava na conceituação teórica.
[1] “Tão certo é que os deuses não dão presentes graciosos a todos igualmente, nem forma, nem mente, nem eloquência. Pois um homem é inferior em beleza, mas o deus põe uma coroa de beleza em suas palavras, e os homens olham para ele com prazer, e ele fala sem vacilar com doce modéstia, e é notável entre o povo reunido e como ele atravessa a cidade os homens o contemplam como a um deus. Outro novamente está em beleza como os imortais [...]”
[2] Ver: Rohden, O poder da Linguagem: A Arte retórica de Aristóteles, pp 16.
[3] Idem, pp 16.
[4] “Assim falou o filho de Peleu, e derrubou no chão o cajado cravejado de pregos de ouro, e ele mesmo se sentou, enquanto o filho de Atreu continuava a descarregar sua ira contra ele. Então entre eles surgiu Nestor, doce de fala, o orador de voz clara dos pilianos, de cuja língua fluía a fala mais doce que o mel.”
[5] Idem, pp. 17.
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