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O Padre Melchior e a religião em Machado de Assis

O que se deve crer sem medo é que Deus é Deus; – Machado de Assis[1]


Não há dúvidas de que Machado de Assis é um dos maiores nomes que o Brasil já deu ao mundo. Como se não bastasse ter sido reconhecido ainda em sua época como grande escritor[2], assim permaneceu até que fosse criado um consenso de que, entre os grandes de todos os tempos, ele tem lugar privilegiado; um colosso que sobrevive ao teste do tempo – que Robert M. Hutchins aponta como critério para definir quais livros são obras-primas[3] –, e isso num país que tem o péssimo costume de extirpar de sua memória seus grandes nomes. Um de seus biógrafos, Magalhães Jr., acertadamente apontou:


O menino do morro do Livramento é hoje, no plano literário, não só um dos nossos poucos nomes que resistiram ao filtro do tempo, mas um dos raros cuja glória aumenta à medida que os anos passam[4].


Autor de muitos clássicos da literatura brasileira, Machado eternizou-se sobretudo por seus “Memórias Póstumas de Brás Cubas” e “Dom Casmurro”, livros que datam de uma fase de sua vida onde seu estilo se aprimora. Mas estes não são, ao menos diretamente, os focos principais deste ensaio, que visa aprofundar alguns pontos de um romance menos conhecido e um tanto subestimado pelos observadores mais indiferentes. Helena entra muitas vezes do lado de cá da conhecida, embora não muito exata[5], distinção entre primeira e segunda fase da obra machadiana e, por isso, é já taxada como uma obra menor. É claro que o terceiro romance de Machado possui, na hierarquia qualitativa de sua obra, um lugar próprio que não o de Magnum opus, mas é também verdade que o livro pode ser muito mais do que um simples entretenimento romanesco.


Machado de Assis tinha, para além da genialidade literária, uma personalidade muito própria e complexa. Não à toa foram surgindo tantas teorias a respeito de suas inclinações. Niilista, pessimista, ateu, ele mesmo um casmurro, um Brás Cubas, que se orgulhava de a nenhum filho transmitir o legado de sua miséria…[6], tudo isso ele foi aos olhos dos mais diferentes intérpretes. Mas o escritor foi mais do que as impressões mais simplistas fazem parecer. Nascido  pobre em 21 de junho de 1839, órfão muito cedo, epilético e gago, Machado foi um autodidata por excelência. Construiu a si mesmo a partir da necessidade que sentia de superar suas circunstâncias. Trabalhou e estudou incansavelmente porque, segundo Lúcia Miguel Pereira, tinha, ao contrário de Estêvão, do seu A Mão e a Luva”, em si a força indispensável a todo o homem que põe a mira acima do estado em que nasceu'7.


Os seus estudos foram muito irregulares. Ao deixar a escola de primeiras letras, sabendo apenas a ler e escrever, tratou de instruir-se a si mesmo, sem professores nem conselheiros, e assim adquiri todos os conhecimentos indispensáveis á carreira com que devia ilustrar o seu nome. Para dar uma ideia da força de vontade que ele possuía  – e ainda possui – em se tratando de enriquecer o espirito, basta dizer que tinha perto de cinquenta anos quando aprendeu a língua alemã[8].


Esse Joaquim Maria, que “nada tinha de tímido quando se tratava de enriquecer seu patrimônio cultural”[9], deixou de ser o menino pobre e iletrado para se tornar um escritor consagrado, amigo de muitos dos grandes do seu tempo e com renome literário mesmo antes da publicação de algumas de suas maiores obras[10]. Suas relações pessoais dizem muito. Solícito e polido, foi, nos dizeres de João Ribeiro, um “completo gentleman, o mais acabado espécimen da doçura e da polidez humana”[11]. Ao contrário de alguns de seus personagens, soube amar. Como se sabe, amou profundamente Carolina, sua esposa – tanto que esperava morrer antes dela, por não saber se suportaria sua ausência[12] –  mas não só ela. Alguns de seus contemporâneos mais próximos, tais como José Veríssimo, Mário de Alencar, Magalhães de Azeredo,  Joaquim Nabuco e outros, conviveram com um generoso amigo, que, quando acometido pela tristeza da viuvez, foi retribuído com a preocupação de muitos consoladores.


A solidão de Machado era diferente. Ele tinha a solidariedade dos amigos. Não só dos presentes, mas também dos ausentes, que o cercavam de atenções, em cartas cheias de simpatia e afeto[13].


É verdade que o autor foi um escritor biográfico, no sentido de que colocava muito de si em seus personagens, como já nos mostrou Lúcia Miguel Pereira em seu livro, mas isso não quer dizer que carregava todas as chagas de suas criações. Quis ascender socialmente sem ser um Palha, foi pessimista sem ser um Brás Cubas[14], e foi introvertido e solitário sem ser como o velho casmurro Bento Santiago (Bentinho). Esse “anti-Brás Cubas”, no dizer do biógrafo[15],  foi, como constatou Artur Azevedo, curiosamente não só “uma figura hierática, solene, conselheiral, mas o oposto disso: alegre, calorosa, humana, viva”[16].


Existe, portanto, um Machado de Assis desconhecido, e que surpreende os menos familiarizados com sua vida – eis a importância deste simplório painel  biográfico. Do mesmo modo há em sua obra alguns aspectos mais ignorados, sobretudo naqueles livros escritos no início de sua carreira como romancista, comumente tidos como menores e desinteressantes. Este, como já dito, é o caso de Helena, publicado em 1876. Endereçando um volume à Salvador de Mendonça, disse o autor: “Dizem aqui que dos meus livros é o menos mau; não sei, lá verás. Faço o que  posso e quando posso”[17]. Anos depois, numa nova edição, afirma ter adicionado apenas algumas emendas de linguagem, que não alteravam a feição do livro. “Ele é o mesmo da data em que o compus e imprimi, diverso do que o tempo me fez depois”. E continua:


Não me culpeis pelo que achardes de romanesco. Dos que então fiz, esse me era particularmente prezado. Agora mesmo, que há tanto me fui a outras e diferentes páginas, ouço um eco remoto, ao reler estas, eco de mocidade e fé ingênua. É claro que, em nenhum caso, lhes tiraria a feição passada; cada obra pertence ao seu tempo[18].


Seu criador não deixava, portanto, de ver alguns indícios de mocidade e inexperiência naquela sua obra passada, o que é razoável, dado que é conhecido que durante sua vida, Machado de Assis aperfeiçoou sua escrita até se tornar o mestre. Mas o que é Helena?


Seu enredo fundamenta-se na história de uma moça que dá nome ao volume, que surge na trama por ocasião da morte do conselheiro Vale, que afirmara, antes do último suspiro, a existência de uma filha natural, e que deveria, segundo suas últimas exigências, ser incorporada à família e compartilhar da herança. Essa família, composta pela irmã do conselheiro, Dona Úrsula, e Estácio, filho do falecido, apesar de estarrecer-se com a notícia, acata o último desejo do conselheiro e acolhe Helena. Camargo, pai de Eugênia, reconheceu que conhecia a história, pois o pai de Estácio, seu amigo, já há muito a revelara em particular. A nova herdeira, que até ali fora criada num colégio em Botafogo, muda-se para a antiga residência do pai, em Andaraí, para viver com os novos parentes. Não é, a princípio, muito bem recebida, sobretudo pela tia, Dona Úrsula, que a via com extrema desconfiança e a tratava com uma exagerada má vontade. Seu novo irmão faz-se mais solícito. Helena mostra-se polida, respeitosa e servil, e é em uma ocasião de doença da tia que a suposta intrusa se mostra mais prestativa, sendo peça fundamental em sua recuperação. Grata, Dona Úrsula finalmente a acolhe como parte da família, ao mesmo tempo que suas relações com Estácio se fortalecem. E se fortalecem até demais.


Helena tinha um hábito suspeito de passear a cavalo pelas redondezas somente na companhia do escravo, Vicente, seu “fiel servidor”[19]. Mais tarde, descobre-se que seus passeios consistiam em fazer visitas a um homem, Salvador, que Estácio descobre ser o pai real de Helena. A moça não era filha do conselheiro, e tanto o suposto pai como a suposta filha sabiam disso. Ângela, mãe de Helena, uniu-se a Salvador em circunstâncias complexas. O pai dele era contra a união, e eles precisaram fugir disso, sendo obrigados, assim, a viver na pobreza. Uma filha surge dessa relação, mas numa ocasião de viagem de Salvador, Ângela se envolve com o conselheiro e, o pai da criança, ao voltar e ver que foi traído dessa forma, abdica de suas vontades e seus direitos ao entender que a filha talvez estivesse melhor sob a proteção do conselheiro, que a adota como filha. Até o dia em que ela o reencontra e o reconhece, descobrindo que o suposto falecimento do pai biológico era uma farsa.


Neste meio tempo, algo acontece no seio da família. Estácio, antes de saber que Helena não era sua irmã de fato, começa a sentir ciúmes dela. E meio que de casamento já pré-definido com a filha de Camargo, Eugênia, pouco caso faz de prosseguir com o plano. Helena parece se acertar com a ideia de casar com Luís Mendonça, amigo de seu irmão adotivo. Mas a relação dos irmãos por demais se estreitara. E aí entra a importância central de um dos grandes vultos dessa obra: o Padre Melchior, sacerdote próximo da família do conselheiro e até do próprio, chegando a aconselhá-lo quando da sua situação com a mãe de Helena. É o Pe. Melchior o responsável por escancarar a verdade ao leitor e ao rapaz: “Estácio, disse Melchior pausadamente, tu amas tua irmã”[20]. Eis o grande drama, que dura até Estácio descobrir com Salvador que Helena não era de fato sua irmã, criando outro problema: se não era da família e não só conhecia como visitava o pai biológico, Helena aproveitara da família e da generosidade do conselheiro. Mas a garota tinha princípios, e se não o revelou antes, fora por motivos que acreditava serem razoáveis. Queria voltar a morar com o pai biológico que, prevendo que Helena assim procederia, sumiu no mundo para garantir que a filha tivesse algum futuro. O dilema moral estava posto no coração da protagonista, até que ela, após se expor a uma forte chuva, pega uma febre e morre. E “enfim, inclinou-se também [Estácio], e a fronte do cadáver  recebeu o primeiro beijo de amor”[21].


É nesse contexto que surgem alguns dos bons personagens da trama. Estácio, preso ao mundo que sua classe permitia que ele criasse, foi um homem limitado, com alguns espasmos de egoísmo[22], mas sem ser um canalha. Helena não queria aproveitar da família que tão bem a acolhera, mas foi envolvida em uma situação que, quando escancarada na sua natureza moral, prostrou-a: “Deixe-me morrer!”, dizia ela, inconsolável[23]. D. Úrsula, assim que entende que a família estava segura de um golpe de uma impostora e interesseira, dedica-lhe o mais sincero amor. E há o interessante Pe. Melchior, que, embora não apareça tanto quanto outros personagens, marca a história com sua personalidade.


Melchior é uma daquelas inúmeras manifestações da presença da Igreja e de suas ramificações na obra machadiana, que está “povoada de igrejas, sacristães, padres e cônegos”[24]. Machado, que “discordava de padres e frades”, sobretudo dos maus religiosos, “sem incorrer em desprezo pela religião”[25], mesmo quando fazia ressalvas e protestos, fazia-os “contra o desvirtuamento da Igreja, não contra a Igreja, em si”[26]. Essa perspectiva pode ser vista na própria descrição que o narrador de Helena faz do padre:


[...] De compostura quieta e grave, austero sem formalismo, sociável sem mundanidade, tolerante sem fraqueza, era o verdadeiro varão apostólico, homem de sua Igreja e de seu Deus, íntegro na fé, constante na esperança, ardente na caridade[27].


Esse era, portanto, o que parecia ser o ideal de religiosidade para o autor. É o que Magalhães Jr., biógrafo de Machado já citado, apresenta no interessante capítulo Machado de Assis e a Religião do seu Machado de Assis Desconhecido, ao fazer uma retrospectiva das manifestações religiosas do “cético” criador de Brás Cubas. Da vida sacristã na infância até a presença da religião em seus primeiros escritos[28], da ainda forte convicção religiosa aos vinte e poucos anos[29] até a fria, porém visível, crença na posteridade na velhice[30], não era, como Brás Cubas, um materialista que entregava a carne aos vermes[31]. A conclusão, que o biógrafo não chega a definir absolutamente, é que Joaquim Maria conviveu com um tipo de fé ao seu modo, que descreu dos homens sem chegar, no entanto, a renegar explicitamente a Deus. Essa seria a causa de sua recusa de receber a extrema-unção e de confessar-se à beira da morte. “Achou que seria hipocrisia”[32]. Em Lúcia Miguel Pereira temos a adição de um “Não creio”[33]. Não sabemos se com isso se referia a outra vida, como querem alguns, ou ao intermédio de outros homens para alcançá-la, como defende Magalhães Jr[34]. Seu modo de vida teria sido, porém, segundo um amigo próximo e devoto católico, Joaquim Nabuco, o de um religioso:


Você pode cultivar a vesícula do fel para a sua filosofia social, em seus romances, mas suas cartas o traem. Você não é somente um homem feliz, vive na beatitude, como convém a um Papa, e Papa digno de época de fé, como a que hoje aí se tem na Academia. Agora, não vá dizer que o ofendi e o acusei de hipocrisia, chamando-o de feliz[35].


Melchior, sendo apresentado como o ideal de sacerdote, verdadeiro varão apostólico, homem de Deus e de sua Igreja, reflete ainda aquele Machado de Assis que “quer que a Igreja volte ao seu verdadeiro lugar, ao seu legítimo papel”. Porque “Dói-lhe vê-la desviada dos seus rumos”[36]. Eis a fundamentação de seu importante papel no enredo. Melchior é como o guia que, não só desvela a verdade aos olhos cegos, mas que defende a moralidade – não foi tantas vezes seu criador chamado de moralista? –; seja para o conselheiro, respeitando-o, mas atacando diretamente a origem da tristeza de sua esposa, mãe de Estácio (a união ilícita do conselheiro com a mãe de Helena)[37], seja para este, ao descobrir sua inclinação ao amor incestuoso, “um desvio da lei social e religiosa”, aconselhando-o, porém, como quem reconhece seu papel de pai espiritual: “Entra em teu coração, Estácio; recolve-lhe os mais íntimos recantos, e lá acharás um gérmen funesto; lança-o fora de ti, que é o preceito do Eterno Mestre”[38].


Era, pois, o padre um tipo superior, voltado para a vida do espírito, “um solitário" que “amava sobretudo estar separado dos homens”. E assim o fazia na maior parte do tempo, quando esquecia as coisas de seu século enquanto lia e meditava[39]. Melchior é o tipo intelectual que entendia, com o Padre A. Sertillanges, que “O recolhimento é laboratório do espírito”  e que “A solidão interior e o silêncio, suas duas asas”[40], e lia Tertuliano, Agostinho, ou outro da mesma estatura “porque amava contemplar os grandes espíritos do passado”, pois


Não se pode, dirá Santo Tomás, contemplar o tempo todo, mas aquele que busca ardentemente a contemplação, que a ela orienta toda sua vida e a retoma sempre que possível, torna-a, de certo modo, contínua da mesma maneira que pertence à terra[41].


É curioso que alguém consideravelmente afastado da vida religiosa costumeira e que foi visto como quase indiferente à ela, tenha definido o espírito sacerdotal tal como um intelectual católico como Sertillanges. Talvez assim tenha sido porque, para o teólogo francês, a vida intelectual é como um sacerdócio, e, neste, Machado conservou-se até a morte. Melchior, porém, não era frio. Cria em Deus como se nada mais fosse possível. Perguntando ao jovem e vacilante Estácio se assim também o cria, recebe reticências como resposta. E emenda:


Não basta supor que se crê; nem basta crer à ligeira, como na existência de uma região obscura da Ásia, onde nunca se pretende pôr os pés. O Deus de que te falo, não é só essa sublime necessidade do espírito, que apenas contenta alguns filósofos; falo-te do Deus criador e remunerador, do Deus que lê no fundo de nossas consciências, que nos deu a vida, que nos há de dar a morte e além da morte, o prêmio ou o castigo[42].


Situação parecida vamos encontrar em Os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski. Nesse clássico da literatura russa e ocidental, temos a figura do stáriets Zósima, um frei tido como sábio e que preenche um número considerável de páginas com suas reflexões. Em determinado momento do romance, faz, para uma moça, quase a mesma pergunta que Melchior fizera para Estácio: – Não crês em Deus? E recebendo uma resposta longa, porém reticente, tal como a do filho do conselheiro ao padre, diz que podemos ser persuadidos por aquilo que não se pode provar. Questionado de que maneira isso seria possível, esclarece:


Pela experiência do amor que age. Esforce-se por amar seu próximo com ardor e sem cessar. À medida que progredir no amor, convencer-se-á a senhora da existência de Deus e da imortalidade da sua alma. Se fôr até a abnegação total no seu amor ao próximo, então acreditará indubitavelmente e nenhuma dúvida mesmo poderá aflorar sua alma[43].


Não é outro sentimento que acomete Estácio quando dos últimos momentos de Helena, que, no fim das contas, morre para redimir-se de seu erro. Sabendo que não era a filha de seu pai ali prostrada, mas sim a filha do pobre Salvador, amou-a mais. Tanto que, enquanto o padre preparava para que Helena recebesse os ritos espirituais para repousar na eternidade, Estácio sai “para ir, longe, desabafar o desespero”,  e acaba por recorrer ao Deus que antes vacilava em crer:


desceu à chácara, vagou por ela delirante, a soluçar como uma criança, ora abraçando a uma árvore, ora ajoelhado pedindo a Deus a vida de Helena. O coração do moço não conhecia o fervor religioso; mas a imagem da morte deu-lhe o que a vida lhe levara, e êle rezou, rezou sozinho, sem hipocrisia nem dúvida[44].


Foi o amor, como disse o stáriets Zósima, que o fez crer sem hipocrisia e rezar. Creu naquele Deus que lê no fundo de nossas consciências, do qual falava o padre Melchior. Creu e rezou, como aconselhava o sábio religioso em Os Irmãos Karamázov: “Jovens, não se esqueçam da oração. Cada uma delas, se sincera, exprime um novo sentimento, fonte duma ideia nova que ignoravas e que te reconfortará, e compreenderás que a prece é uma educação”[45]. Partindo, porém, Helena, fica Estácio, que poderia ter ouvido, talvez, do padre Melchior, o mesmo que Aliócha Karamázov ouviu do frei Zósima: “Tal é tua vocação: procurar a felicidade na dor”[46].


Essa dor de perder quem muito amava, Machado também sofrera muitos anos depois, com a morte de sua Carolina, em 1904. E se é verdade que não conseguiu, como Estácio, crer sem hipocrisia, muito sofreu sem revoltar-se. Não era de seu feitio. E um enredo como o de Helena e um personagem como o Pe. Melchior só evidenciam que Machado não tinha em seu catálogo somente Brás Cubas e Palhas. Que a realidade não é só canalhice e egoísmo, e mesmo que ele assim enxergasse em determinado momento, sua postura diante da vida continuaria sendo a mesma, como foi a de Melchior diante a tragédia familiar da qual participou. Um com as letras e a escrita, outro com a religião, esses dois espíritos superiores mantiveram-se firmes. Se o padre olhava para o infortúnio de Estácio silencioso e compassivo, porque “Os olhos, que eram de águia para os mistérios da vida, eram de pomba para os grandes infortúnios”, com esse sentimento que Machado parecia igualmente olhar para o mundo. E é assim que Olavo Bilac o descreve após sua morte:  


Machado de Assis não odiou os homens: teve pena de todos eles, porque teve pena de si mesmo.


[...] a alma desse homem raro compreendeu que todos os homens, todas as coisas, merecem apenas compaixão. Nunca em seus versos e em sua prosa houve um grito de raiva nem um movimento de asco. A sua ironia foi mansa: não feria, – perdoava. Alguns dos tipos das duas novelas são modelos de egoísmo, de maldade fria, de dureza de alma; parece, porém, que ao acentuar esses defeitos, o novelista está dizendo nas entrelinhas da narração: “coitados! são o que tinham de ser; não são o que desejariam ser, se lhes fosse permitido o desejo de melhorar…”[47]


Eis um exemplo de como Helena pode ser visto como muito mais que um simplório passatempo romântico para senhoras de meia idade. Eis uma lição para os que teimam em ler um autor como Machado de Assis de forma desleixada e desatenta. Pode-se, é certo, fazê-lo, mas não sem arriscar perder muito daquilo que ele tem a oferecer.


Bibliografia:


ASSIS, Machado de. Correspondência.  Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1953.

ASSIS, Machado de. Helena. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1952.

ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 2003.

COSTA, Pedro Pereira da Silva. Machado de Assis. São Paulo: Editora três. A vida dos grandes brasileiros,  2003.

ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Ciranda Cultural, 2006.

DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamázov. Rio de Janeiro: Abril Cultural, 1970.

Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional.

HUTCHINS, Robert M., Great Books of the western world: The Great Conversation. London: Encyclpædia Britannica, inc.

MAGALHÃES JR., Raimundo. Machado de Assis Desconhecido. São Paulo: LISA- Livros Irradiantes S. A., 1971.

MAGALHÃES JR., Raimundo. Vida e Obra de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis (Estudo Crítico e Biográfico). Brasília: Senado Federal, 2019.

ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980.

SERTILLANGES, A. D. A Vida Intelectual. Santa Maria - RS: Minha Biblioteca Católica.



[1] ASSIS, Machado de. Esaú e Jacó. São Paulo: Editora Nova Cultural Ltda, 2003, Cap. XXIX, p.67.

[2] No Vol. II-N. 93 do jornal A Semana, do diretor Valentim Magalhães, percebe-se claramente o renome que Machado de Assis tinha ainda em vida. Em ocasião do 22º aniversário da publicação das Crysalidas, primeiro livro de versos do autor, Machado de Assis é homenageado no jornal, referenciado a todo momento com títulos de grandeza literária, como “o Mestre das Letras Brasileiras”. Disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional: A Semana: Volume I (RJ) - 1885 a 1895, Ano 1886\Edição 00093 (8).

[3] HUTCHINS, Robert M., Great Books of the western world: The Great Conversation. London: Encyclpædia Britannica, inc., 1955.  p. xi


[4] MAGALHÃES JR., Raimundo. Vida e Obra de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981, vol.4, p. 379.

[5] A separação entre as chamadas duas fases de Machado de Assis parece ser mais uma simplificação do que uma definição exata do seu trabalho. É verdade que sua obra passa por mudanças, como ocorre com muitos autores, mas é também verdade que muito do que se tem em sua “segunda fase” já havia sido sutilmente apresentado em suas primeiras obras. Magalhães Jr. coloca Ressurreição como um rascunho de Dom Casmurro. MAGALHÃES JR., Raimundo. Op. Cit., p. 111. E mesmo Sílvio Romero, o severo antagonista e crítico de Machado, reconhece que “A nova maneira de Machado de Assis não estava em completa antinomia com o seu passado, sendo apenas o desenvolvimento normal de bons germes que ele nativamente possuía, naquilo que a nova tendência teve de bom [...] Por outros termos, seu romantismo foi sempre, no meio da barulhada  imaginativa e turbulenta de seus velhos companheiros, pacato e ponderado, com uma porta aberta para o lado da observação e da realidade;”. ROMERO, Sílvio. História da Literatura Brasileira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1980, vol. 5, p. 1501.

[6] Referência ao consagrado final de Memórias Póstumas de Brás Cubas: ”Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente  que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria. ”. ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas, Cap. CLIX.

[7] PEREIRA, Lúcia Miguel. Machado de Assis (Estudo Crítico e Biográfico). Brasília: Senado Federal, 2019,  p. 16

[8] Artur Azevedo em texto para a revista O Album, 1893. Disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, Ano 1893/Edição 00002.

[9] MAGALHÃES JR., Raimundo. Op. Cit., Vol. 2, p. 112.

[10] Lúcia Miguel Pereira aponta: “Antes dos cinquenta anos, em plena produção, Machado de Assis se via, por gente de todas as gerações, celebrado e admirado”. PEREIRA, Lúcia Miguel. Op. Cit., p. 185.

[11] MAGALHÃES JR., Raimundo., Op. Cit., Vol. 3, p. 256.

[12]  MAGALHÃES JR., Raimundo. Op. Cit., Vol. 4, p. 208, 345.

[13] Ibidem, p. 348.

[14] Carlos de Laet, em texto para o jornal Jornal do Commerico, na seção “Microcosmo” diz sobre Machado: “Deixa-me, porém, lembrar-te que a feição característica dessa bella intelligencia é uma serena, comquanto amarga concepção da sociedade que cerca…Dizem-n’o pessimista, e o é, mas sem irritação nem queixumes inuteis. Pensa talvez mal do mundo, mas quer bem a todos”. Edição disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional: Jornal do Commercio (RJ) - 1880 a 1889, Ano 1886\Edição 00282.

[15] “No plano afetivo, ele  [Machado] foi um anti-Brás Cubas”.  MAGALHÃES JR., Raimundo., Op. Cit., Vol. 3, p. 230.

[16] MAGALHÃES JR., Raimundo. Op. Cit., Vol. 4, p. 208, 368.

[17] MAGALHÃES JR., Raimundo. Op. Cit., Vol. 2, p. 196.

[18] COSTA, Pedro Pereira da Silva. Machado de Assis. São Paulo: Editora três. A vida dos grandes brasileiros,  2003, p.120.

[19] ASSIS, Machado de. Helena. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1952, p. 41.

[20] Ibidem, p.243.

[21] Ibidem, p.309.

[22] Estácio, que não era mau, mas ao bater de frente com a pobreza de Salvador, a repugna: ‘porque o espetáculo da pobreza lhe repugnava aos olhos cheios de abastança”, coisa que não escapa ao pai de Helena. Ver: Ibidem, p.216, 221.

[23] Ibidem, p. 304.

[24] MAGALHÃES JR., Raimundo. Machado de Assis Desconhecido. São Paulo: LISA- Livros Irradiantes S. A., 1971, p. 317. Aqui, o biógrafo do autor faz um bom balanço sobre a presença da religião cristã na obra de Machado.

[25] Ibidem, p. 319.

[26] Ibidem, p. 323.

[27] ASSIS, Machado de. Helena. Op. Cit., p. 42.

[28] “A ideia de Deus está presente em várias outras poesias, como Sombras, Fé, A Caridade, A Cristã Nova, etc.” MAGALHÃES JR., Raimundo. Machado de Assis Desconhecido. Op. Cit., p. 321. Magalhães Jr. ainda dá outros exemplos. Ver nas páginas seguintes.

[29] “Tinha Machado de Assis vinte e três anos de idade e mantinha a crença da infância e da adolescência”. Ibidem, p. 322.

[30] “Tudo me lembra a minha meiga Carolina. Como estou à beira do eterno aposento, não gastarei muito tempo em recordá-la. Irei vê-la, ela me esperará”. ASSIS, Machado de. Correspondência.  Rio de Janeiro: W. M. Jackson Inc., 1953, p. 80.

[31] “Eu, materialista? Absolutamente!”. MAGALHÃES JR., Raimundo. Machado de Assis Desconhecido. Op. Cit., p. 332.

[32] MAGALHÃES JR., Raimundo. Vida e Obra de Machado de Assis. Op. Cit., Vol. 4, p. 360.

[33] PEREIRA, Lúcia Miguel. Op. Cit., p. 262.

[34] MAGALHÃES JR., Raimundo. Machado de Assis Desconhecido. Op. Cit., p. 338.

[35] ASSIS, Machado de. Correspondência.  Op. Cit., p. 74.

[36] MAGALHÃES JR., Raimundo. Machado de Assis Desconhecido. Op. Cit., p. 326.

[37] ASSIS, Machado de. Helena. Op. Cit., p. 42.

[38] Ibidem, p. 244.

[39] Ibidem, p. 194.

[40] SERTILLANGES, A. D. A Vida Intelectual. Santa Maria - RS: Minha Biblioteca Católica: p. 49.

[41] Ibidem, p. 52.

[42]  ASSIS, Machado de. Helena. Op. Cit., p. 242.

[43] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamázov, Rio de Janeiro: Abril Cultural, 1970, p.50.

[44] ASSIS, Machado de. Helena. Op. Cit., p. 307.

[45] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Os Irmãos Karamázov, Op. Cit., p. 233.

[46] Ibidem, p. 63.

[47] Olavo Bilac na Chronica da Gazeta de Notícias em 4 de dezembro de 1908, dias após o falecimento do autor, em 29 de setembro do mesmo ano. Texto disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional: Gazeta de Noticias (RJ) - 1900 a 1919, Ano 1908\Edição 00278, p. 5/18.


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Lucas Ribeiro Fernandes

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