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Por: Bruno Fontana

25/07/2022

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O Simbolismo de Se7en

Seven é muito mais do que um clássico filme policial sob a direção de David Fincher ou do que o chocante head-in-a-box thriller escrito por Andrew Kevin Walker. Por trás do espetáculo estonteante da direção e do roteiro há um drama espiritual, uma narrativa oculta que organiza simbolicamente toda a trama. Como acontece nas obras de Chopin ou de Machado de Assis, Seven realiza o raríssimo feito de despertar o entusiasmo popular — para não dizer popularesco — por uma arte altamente esotérica. E, por isso mesmo, ao contrário daquilo a que se limitou a crítica cinematográfica, meu objetivo é ajudar o espectador a conhecer as camadas mais profundas do filme, as quais, como os átomos do nosso corpo, o estruturam sem que a percepção imediata do homem médio jamais possa se dar conta de sua existência. Eis a verdadeira tarefa da crítica: explicar e potencializar o trabalho do artista, conectando sua alma com a do público. A diferença é que para conhecer nossa composição atômica dependemos das ciências naturais, para entender o filme em questão, da ciência dos símbolos.


Em geral Seven é interpretado como tragédia do policial David Mills (Brad Pitt), que, além de ter sua mulher decapitada por um serial killer, se vinga do assassino, atirando-lhe na cabeça, e por isso acaba condenado a passar o resto da vida na prisão. De fato, praticamente todo o enredo pode ser contado segundo esse ponto de vista, mal mencionando o outro detetive: William Somerset (Morgan Freeman). 


Mas a verdade é que dando um pouco mais de atenção ao leitmotiv simbólico do filme – o número sete – vê-se que o buraco é mais embaixo, que há como um sub-enredo conduzindo secretamente cada um dos passos da narrativa policial. Sete pecadores, representantes dos sete pecados capitais, se tornam sete vítimas de sete crimes, e o mais importante: durante os sete últimos dias de Somerset na polícia, imediatamente antes de sua aposentadoria. Se isso já não for suficiente para deslocar o segundo policial da periferia para o centro da narrativa, ainda me cabe observar que ele é o único a não participar diretamente da série de assassinatos, não mata e nem morre, não peca nem pune, assumindo o ponto de vista privilegiado de quem contempla a tudo tão somente com os olhos d’alma, como se assistisse a uma peça de teatro ou mesmo a um ritual. Ele permanece enquanto todos os outros se vão; aliás, o filme começa e acaba com Somerset em cena. O serial killer não só arquitetou sistematicamente seus crimes, mas os imaginou à maneira de uma “obra-prima”, um exemplo – como ele mesmo o confessa – a ser seguido por quem fosse capaz de compreender o sentido de sua arte. Essa pessoa só podia ser um policial tão inteligente e sistemático quanto ele, o seu alter ego do bem: Somerset. 


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Não, a tragédia pessoal de Mills não é o núcleo do enredo, e o drama de sua vida familiar não é a essência da narrativa. Essencial é a transformação interior, moral e espiritual, por que passa William Somerset à medida que a investigação se desenrola, inspirando-lhe, por meio do “terror”, a esperança perdida, e inclinando-o ao bem pela visão do absurdo e do mal. Para que eu não pareça lunático demais, ainda uso um argumento de autoridade: o próprio diretor, em entrevista, afirmou ser o filme nada mais que “a meditation on evil, and how evil gets on you and you can’t get it off”.


Ranzinza e de saco cheio da vida é como desde o início Somerset se apresenta. Ele já está velho, cansado, e – graças a Deus! – próximo de se aposentar para afastar-se da cidade grande em direção ao campo: fugere urbem. A ambientação urbana, escura e chuvosa surge aí enquanto o cenário do mal, da violência e do crime, onde, como é dito no filme, “vemos um pecado em cada esquina, em cada casa, e o toleramos. Toleramos porque são comuns, são triviais”. Trata-se em resumo, para usar o clichê, de uma "selva de pedra", que muito lembra a selva oscura da Divina Comédia. Somerset perdeu-se nela e já adentrou o Inferno, em cuja entrada se lê a inscrição: "abandonai toda a esperança, vós que entrais"

Mas tudo muda quando, em sua última semana na polícia, ele conhece o novo parceiro, o detetive Mills, e o caso do serial killer John Doe. A partir daí sua vida se transforma em uma jornada espiritual, em uma autêntica narrativa iniciática, na qual 1) o discípulo prestes a ser iniciado (ele próprio), é obrigado a enfrentar 2) uma série de provas e adversidades (os assassinatos em série) criadas por 3) um inimigo (John Doe), cuja superação, se alcançada, purificará a alma do discípulo, conferindo-lhe determinada abertura de espírito que antes não possuía, um novo de modo ser. “Longo e árduo é o caminho que conduz do inferno à luz”, escreve o psicopata na primeira cena de crime. 


O momento central do enredo, quando se dá a periagoge platônica de Somerset, é a conversa que os dois policiais entabulam em um bar depois do expediente. Aos três elementos já citados das narrativas iniciáticas, faltava, até então, a presença de um quarto: o mestre, responsável por indicar ao aprendiz o caminho das pedras, a estrada que leva das sombras da caverna à luminosidade exterior, da indiferença egoísta à esperança caridosa, do Inferno ao Paraíso Por mais incrível que pareça, quem desempenha esse papel é Mills, o policial esquentadinho e bestalhão, mas cheio de coração (símbolo tradicional da consciência superior), pois é ele o único que confronta, sem receio, a apatia individualista e covarde de Somerset: 


‘’Você não é diferente, você não é nada melhor do que isso. [...] Você fala que o problema é as pessoas não se importarem [com o mal] e, ao mesmo tempo, diz: ‘não me importo com as pessoas.’ Eu não acho que você esteja saindo [da polícia] porque acredita nas coisas que diz. Eu acho que, ao contrário, quer acreditar nelas porque está saindo.’’ 


Os efeitos transformadores e iniciáticos desse ousado confrontamento, porém, só no epílogo se explicitam. Somerset, mesmo depois de toda a desgraça que acabara de vivenciar, recupera as virtudes cristãs da fé, da esperança e do amor, afirmando sua vontade de lutar pelo mundo, ainda sabendo que o Bem em si não se encontra aqui, mas na eternidade. É a última fala do filme: “Hemingway uma vez escreveu: o mundo é um bom lugar e vale a pena lutar por ele. Eu concordo com a segunda parte.”  


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Retroativamente o simbolismo numérico enfim se torna inteligível. Sete, como se costuma dizer, é número sagrado. São sete os planetas visíveis, as notas musicais, as partes da semana, as cores do arco-íris, as artes liberais..., mas são sete também os dias da Criação. E, como aponta o grande historiador das religiões, Mircea Eliade, em sociedades arcaicas e tradicionais é muito comum que ritos e cerimônias importantes imitem, em escala menor, as etapas da manifestação cósmica originária. Entende-se que toda cosmogonia, por ser a criação primordial da qual depende tudo o mais, acaba servindo de modelo ideal a qualquer ato criador ou renovador. Assim, a jornada hebdomadária dos policiais reproduz no microcosmo da alma de Somerset o padrão setenário da Criação bíblica; e da mesma maneira que o cosmos foi criado em sete dias, em uma semana a alma de Somerset é recriada. Toda iniciação, como se vê exemplarmente no rito de batismo, equivale a um segundo nascimento. 


Além disso, o primeiro dia do filme é domingo, o dia inicial da Criação, o que reitera o simbolismo cosmogônico. E, repetindo em outro nível a mesma ideia, a primeira de todas as cenas se passa de manhãzinha, no apartamento de Somerset: a noite da qual nasce o Sol todas as manhãs simboliza o Caos primordial, e o nascer do Sol é uma réplica da gênese do universo – fiat lux! Esse mesmo símbolo ecoará ainda na cena final, o domingo ensolarado no qual há o último encontro de Mills e John Doe. É neste dia, o sétimo, que Somerset, mais uma vez à maneira de Dante no Inferno, depois de ter visto uma série de pecadores sendo brutalmente punidos por seus pecados, termina sua jornada. É a única cena do filme em que o tempo não está nublado. Após tanta chuva e escuridão, torna-se de novo possível olhar em direção à luz do céu azul a riveder le stelle. 


E, assim por diante, numa riqueza simbólica que abrange cada detalhe e reverbera em todas as dimensões estéticas do filme (na fotografia, na ambientação, na montagem – o primeiro caso policial começa exatamente em sete minutos de filme –, no ethos dos personagens, etc.), Seven se mostra não um mero thriller policial com decoração esotérica, mas uma narrativa simbólica com enfeites policiais.


Já posso dizer, sem provocar muitos escândalos, que o verdadeiro conflito da trama, como no Fausto de Goethe, é a luta entre Deus e o Diabo pela alma do protagonista. Se a cidade é o inferno e os cidadãos são os pecadores, John Doe é evidentemente o emissário do Tinhoso, encarregado de punir os condenados. Por isso mesmo acredita piamente estar fazendo justiça, ainda que seja uma justiça diabólica, desproporcional e absurda. Os dois policiais, por sua vez, Mills (amoroso e impulsivo) e Somerset (insensível e sistemático), como potências complementares de uma mesma alma, simbolizam respectivamente as 1) paixões, que carecerem de ordenação superior, e 2) a razão, que corre o risco de se tornar excessivamente mecânica sem as virtudes afetivas e intuitivas do coração. Só quando o homem consegue harmonizar essas duas forças em vista de um bem maior, dominando seus impulsos vulgares e humanizando o raciocínio frio – o qual pode ser tão ou mais diabólico que os pecados da carne –, só então o homem se pode dizer amadurecido de pleno direito. Antes disso ou estará mais próximo de um chimpanzé que de um homem ou não passará de um sociopata metido a intelectual. Não à toa, justamente na sequência da cena do bar, isto é, no dia seguinte à sua periagoge, Somerset diz a Mills com todas as letras: “for the first time ever, you and I are in total agreement’’. A transformação moral e psicológica por que passara na noite anterior reverbera externamente na nova relação social que ambos passam a ter. Razão e sentimento, cérebro e coração e, por fim, Somerset e Mills, na esperança de alcançar um Bem que transcendesse a ambos, haviam finalmente se unido para lutar contra o John Doe, a personificação do Mal.


Seven, assim, devolve à nossa consciência, entorpecida pelas banalidades do quotidiano, um fundo de valores superiores, sem os quais todo o sentido da vida se perde numa agitação feroz e sem finalidade. Feito as antigas tragédias gregas, ao colocar-nos cara-a-cara com as possibilidades humanas mais monstruosas e absurdas – crimes hediondos, perversões sexuais, apatia desnaturada, corrupção gananciosa, etc. – e, portanto, com as forças demoníacas que habitam o interior de nossa própria alma, essa grande obra acaba por estimular de forma catártica o Bem e o Amor que há no coração de cada um: de te fabula narratur. 


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Sobre o autor

Bruno Fontana é professor de filosofia e editor das obras do professor Olavo de Carvalho.

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