Por: Marcelo Pichioli da Silveira
05/06/2022

O surgimento da Historiografia
Jörn Rüsen iniciou um de seus ensaios sobre consciência histórica com uma historinha. Segundo ele, em um castelo na Escócia existe a inscrição: “Se algum homem do clã Maclonish aparecer perante este castelo, mesmo que venha à meia-noite, com a cabeça de um homem em sua mão, encontrará aqui segurança e proteção contra tudo” [1].
O castelo pertence aos Maclean e a inscrição foi posta ali após este clã ser ajudado pelos Maclonish, como conta uma lenda. Rüsen propõe uma atividade imaginativa.
Imagine que você é um membro do clã Mclean e vive atualmente no castelo de um ancestral. Uma noite escura, um membro do clã Maclonish [...] bate à sua porta pedindo ajuda. Conta que a polícia o está seguindo em razão de um crime de cuja autoria o acusam. [2]
E pergunta: como você agiria? Se sua resposta for dada em função do cumprimento irrestrito do compromisso clânico, ele afirma que sua consciência histórica é tradicional. Ou seja, a experiência temporal que ela recebe e narra é aquela de acordo com uma tradição familiar. Isso se estende, pois a nossa vida não é apenas familiar, mas também política. Assim, assumindo essa consciência, a forma de enxergar a vida tem os contornos desenhados pelas histórias tradicionalmente repetidas pela sociedade.
Existem outros tipos de consciência. Mas a tradicional é sempre a primeira que aparece. Devido, claramente, ao caráter indispensável das tradições para “orientação dentro da vida prática” cuja “negação total conduz a um sentimento de desorientação.” A provisão de tradições funciona como elemento de recordação das origens, que traz consigo toda sorte de obrigações validadas pelas histórias contadas.
A vida humana ganha seu significado por meio do sem-número de narrações feitas sobre o passado, que apontam para o momento presente. São estas narrações que configuram sentido para nós e que nos impedem de cair na desordem total.
Como disse acima, existem outras consciências históricas, porém. Uma consciência crítica e outra genética. A primeira, como o nome já diz, tece críticas à tradição e a segunda se firma na ideia de que as coisas mudam e é possível ajudar um Maclonish de outros modos, pagando um advogado, por exemplo. Aparentemente, estas formas de consciência histórica estão mais próximas da historiografia, como se nota pelo modo como ela surgiu na antiguidade.
Na Grécia, como em todo o mundo antigo, as histórias tradicionais eram parte importante da identidade cultural e da organização social. Segundo Mircea Eliade, os mitos de origem existentes entre os antigos revelavam
[...] a origem da condição atual do homem, das plantas alimentícias e dos animais, da morte, das instituições religiosas (iniciações da puberdade, sociedades secretas, sacrifícios de sangue etc.) e das regras de conduta e comportamento humanos.[3]
Semelhante à regra de conduta dos Mclean para com os Maclonish, cada sociedade tinha um mito de origem para suas práticas sociais. Mas isso passou a ser contestado, num movimento de caráter duplo que deu origem à historiografia tal como a conhecemos hoje. Em primeiro lugar, com a resistência dos gregos com relação ao domínio persa. Em segundo lugar, com o processo de desmitização das histórias tradicionais. Vamos ver ambos.
A resistência política na origem da historiografia
Quando os primeiros historiadores gregos começaram os seus trabalhos, a maioria deles era súdita do império persa e foi influenciada pela presença dos orientais na sua forma de narrar e nos seus objetos [4]. Não só isso, o desenvolvimento da historiografia aconteceu ligado aos estudos geográficos, e as viagens eram feitas entre os persas. Segundo nos conta Arnaldo Momigliano, “O primeiro grego a escrever a respeito de suas explorações geográficas – Scylax de Carianda, um viajante no Golfo Persa e em outros lugares – excursionava à custa e por ordem do rei Dario, em torno de 500 a.C.” [5]
Outra personagem importante foi Hecateu de Mileto, que viajava entre os persas e comparava a evidência grega à não grega, como método de depuração para chegar à verdade[6]. Seu interesse era maior por genealogias e vamos retornar a ele mais a frente. Heródoto também era um súdito persa quando empreendeu suas viagens e fez seus registros sobre os costumes tanto de gregos quanto, nas palavras dele, dos bárbaros [7]. Além disso, mesmo nunca estando na Pérsia propriamente dita, nem falando sua língua, traz em sua obra toda sorte de tradições persas. Ele chegou a conversar com um persa em grego, quando esteve em Atenas [8].
A historiografia grega, no seu início, preocupava-se com a Pérsia. E até a data em que Momigliano escreveu seu livro, os livros de Heródoto eram a fonte mais confiável sobre a antiguidade deste país [9]. Não só isso, o modo de narrar a história também sofreu influência persa. Também os persas tinham seu registro sobre o passado, diversas são as descobertas arqueológicas de inscrições em que os reis e seus feitos são glorificados. Os gregos também mantiveram uma tradicional bibliografia biográfica e autobiográfica, desde a Ilíada, passando por Hesíodo e o já citado Hecateu de Mileto.
Porém, uma coisa muda. Com a rebelião jônica, os gregos iniciam seu processo de democratização e de diferenciação dos persas. A vida grega passa a ser reorganizada e o tipo de história política persa deixa de fazer sentido para seus historiadores. Em lugar do relato de reis, tem-se a narração de grandes eventos e da história local de uma comunidade política guiada por homens de visão. Ou seja, a historiografia grega reflete a resistência ao domínio persa vivido na política e na diferença entre as duas sociedades.
O outro aspecto parece ser mais conhecido, mas vamos a ele mesmo assim.
A historiografia é a crítica dos mitos
Disse que voltaríamos a Hecateu, chegou o momento. O interesse deste homem de Mileto era em genealogias, inclusive a de sua própria família. Como se encontra nos livros de Heródoto, Hecateu viajou ao Egito e encontrou alguns sacerdotes por lá. Na conversa que travou com eles, gabou-se de que era a décima sexta geração de sua família, iniciada por um deus. Os sacerdotes, então, mostraram-lhe uma sequência de 345 sacerdotes sem que houvesse deus algum no começo da lista. Momigliano nos diz que Hecateu poderia dizer que os deuses preferiram estar mais próximo dos gregos e por isso havia um iniciando uma linhagem tão recente, mas ele não estava disposto a isso. Suas palavras marcam o início da depuração mítica vivenciada pelos gregos: as nossas histórias são muitas e são todas ridículas.
A partir daí, a função do historiador grego foi buscar a verdade sobre os fatos, separando-os das fantasias. Nas palavras de Momigliano, o que é tipicamente grego é “A atitude crítica com relação ao registro de acontecimentos, isto é, o desenvolvimento de métodos críticos que nos permitem distinguir entre fatos e fantasias.” [10] Estes métodos surgem de uma revolução política e outra filosófica. A política mostrou que as leis, o nomos, é um fator de diferenciação entre os povos e a filosófica trouxe uma rebelião contra as tradições, a dúvida como ponto de partida e a busca de novos princípios para explicar as coisas.
As tradições míticas sofreram então um processo de depuração. Os historiadores passaram a julgar o passado heroico contado pelas histórias comumente narradas por aquilo que eles conheciam com os próprios olhos. Como pode homem tornar-se monstro e não mais se tornar ainda hoje? Questões deste tempo eram levantadas como objeções para aquilo que aparentava ser o maravilhoso dos mitos e que, atualmente, é que nos encanta.
Paul Veyne diz que “Criticar os mitos não era demonstrar sua falsidade, mas recuperar seu fundo de verdade, porque essa verdade fora coberta de mentiras” [11]. Assim, para o filósofo o mito era uma alegoria das verdades filosóficas, enquanto os historiadores o consideravam uma deformidade da verdade histórica [12]. Os heróis não foram semideuses, eles eram reis, que o populacho resolveu deificar.
Deste modo, se os gregos não inventaram o relato sobre o passado, pois todas as sociedades o tinham, foram eles os responsáveis pela separação entre a narração de fatos estabelecido pela tradição e uma forma crítica de se olhar para ele, que está por trás da forma como fazemos a historiografia hoje [13]. Academicamente, têm surgido diversos métodos para realizar este intento a fim de firmar a verdade sobre o passado. Quase sempre isso esbarra em alguma história repetida desde muito tempo, com a qual nos acostumamos, o que pode gerar certos escândalos. Não deve ser muito diferente do período em que Hecateu afirmou que as diversas histórias de seus contemporâneos não passavam de conversa fiada.
[1]
[2]
[3] ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. São Paulo: Perspectiva, 2016, p. 98.
[4] MOMIGLIANO, Arnaldo. As Raízes Clássicas da Historiografia Moderna. São Paulo: Unesp, 2019.
[5] Idem, p. 29.
[6] Ibidem.
[7] Ibidem.
[8] Idem, p. 30.
[9] Ibidem.
[10] Idem, p. 59.
[11] VEYNE, Paul. Os Gregos Acreditavam em seus Mitos? São Paulo: Unesp, 2014, p. 97.
[12] Idem, p. 108.
[13] Momigliano, op. cit., p. 45 e 59.
COLUNA
História
Sobre o autor
Professor. Mestrando em Direito Negocial e Biodireito pela Universidade Estadual de Londrina/PR. Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Maringá/PR. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro/RJ). Especialista em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro/RJ). Membro da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro). Parecerista da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro) e da Revista Eletrônica de Direito Processual (REDP). Membro do Conselho Editorial da Editora Thoth (Londrina/PR). Editor, escritor e produtor do Resenha Forense.
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