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Por: José Ribas Neto

12/11/2025

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A lealdade que eles não tem: para mulheres birrentas e filhos fujões

Há palavras que perdem o significado de tanto serem ditas. “Lealdade” é uma delas. No vocabulário político brasileiro, ela virou sinônimo de cumplicidade, moeda de troca, senha de pertencimento. Quando um político diz “sou leal”, o que normalmente quer dizer é “não vou trair o grupo, mesmo que o grupo traia o país”.


É assustador, curioso e trágico ver como o termo que deveria exprimir o coração da vida moral tornou-se sinônimo de servidão partidária. É a lealdade a causa e não a verdade que ela diz ter.


O filósofo americano Josiah Royce, em sua obra ‘The Philosophy of Loyalty’ (1908), escreverá que lealdade é “[…] the willing and practical and thoroughgoing devotion of a person to a cause.” A devoção prática de uma pessoa a uma causa, uma entrega voluntária e sustentada no tempo que dá sentido à vida moral.


Mas há uma nuance que escapa aos nossos tribunos: nem toda lealdade é boa.


Royce distingue a lealdade autêntica, aquela que se dirige a causas que ampliam a vida moral da comunidade, da lealdade perversa, que escraviza o indivíduo a um grupo ou líder. Servir a um chefe corrupto, a uma facção ou a uma ideologia degradante, ou mesmo uma causa corrupta em suas ideias e ingrata aos seus membros não é lealdade; é idolatria barata e um vazio de convicções e ideias unido pelo medo e pelos benefícios de devoção ao líder.


Mathew Foust, escreverá um longo livro que se aprofunda no conceito de lealdade royceano, ‘Loyalty to Loyalty: Josiah Royce and the Genuine Moral Life’ (2012), retoma esse ponto e o amplia, pois acredita ele, toda virtude humana, coragem, justiça, honestidade, é uma forma de lealdade.


E mais, segundo Foust a lealdade moral só é verdadeira quando se volta para algo maior do que o próprio grupo. Daí a fórmula decisiva de Royce: “lealdade à lealdade”. Isto é, não basta ser fiel; é preciso ser fiel à própria ideia de fidelidade, àquilo que torna a lealdade digna de ser vivida.


A fidelidade cega, sem reflexão, é o contrário da lealdade moral. É o terreno fértil do fanatismo.


É justamente essa confusão que domina o conservadorismo brasileiro. Os políticos que mais falam em valores, honra e lealdade são, via de regra, os que menos compreendem o sentido desses termos. Falam de lealdade como se fosse disciplina militar, de honra como se fosse marketing, de moral como se fosse estética. Exigem obediência, mas não cultivam fidelidade. Prometem defender causas que nem sabem nomear.


O resultado é um conservadorismo ornamental, que fala de virtude como quem fala de roupa de grife: para impressionar o público, não para vestir a alma.


Royce foi claro ao afirmar que a lealdade é o fundamento da vida ética porque transforma o caos dos desejos em propósito.


O homem que é leal a uma causa digna não vive mais apenas para si, mas para algo que transcende o próprio ego. É essa experiência que dá sentido à existência e é dela que nasce a comunidade moral.


Mas quando a causa se corrompe, quando o grupo a que somos fiéis deixa de servir à vida moral, romper com ele é o dever supremo da lealdade. O homem verdadeiramente leal não teme trair o grupo, teme trair o princípio.


Essa lição é completamente perdida entre os nossos líderes conservadores. Eles confundem fidelidade com submissão, unidade com unanimidade, convicção com conveniência. O político leal é o que não critica o chefe. O militante fiel é o que repete as palavras de ordem. E o traidor, claro, é qualquer um que ouse pensar por conta própria.


O Brasil se converteu num teatro moral de caricaturas onde o personagem mais inteligente performando na praça pública da política tem as convicções de um idiota e as crenças de uma atrasado mental, onde dizem bradar por princípios, mas vivem pelos ganhos da coisa pública; os que falam de fé são devotos do poder; os que juram lealdade à pátria servem a seus próprios interesses.


Não existe lealdade nessa vida medíocre que reduz a massa a meros chimpanzés do voto e o político a mico de salão em busca de aplausos e aceitação de certos grupos de poder.


Royce oferece um antídoto filosófico para esse autoengano coletivo. Pois para bem da verdade o homem desleal é aquele que vive sem propósito, é um ser errante, sem causa que o una aos outros. Essa é a definição perfeita de grande parte da elite política brasileira, errantes com gravata, especialistas em sobreviver. Para Royce, a verdadeira lealdade cria comunidade, e comunidade significa partilhar um destino comum, considerando o passado e o futuro de todos como parte da própria vida.


O conservadorismo que se diz patriótico e reputa a si mesmo valores morais, mas se reduz à defesa de um grupo e interesses personalísticos, seja um filho ou candidatos da própria região, não conserva nada e destrói a própria ideia de pátria, bem como a unidade politica por fatores secundários para além do grupo de valores ou motivações de ordem superior.


Foust observará que viver genuinamente é ser leal, e leal à lealdade. Isso significa que a ética não é um catálogo de regras, mas um exercício constante de fidelidade ao bem. O homem que se diz conservador, mas é incapaz de ser fiel à verdade quando ela fere sua conveniência, não é conservador, é cínico. E o cinismo, disfarçado de pragmatismo, é o que corrói a alma moral de qualquer nação.


O Brasil, nesse sentido, não sofre de polarização; sofre de anemia moral. Tem uma direita que fala de virtudes e uma esquerda que fala de direitos, mas ambas esquecem que o elo entre o homem e o bem é a lealdade.


Royce falava de algo chamado suicídio moral, aquele trágico momento em que o indivíduo abdica de pensar e entrega sua consciência ao coletivo. É a servidão voluntária de um homem-massa, ou a imbecilidade coletiva de um povo.


O homem que jura fidelidade a um líder, não porque o julgue justo, mas porque tem medo de perder o grupo, comete esse suicídio moral. Vive, mas não vive em verdade.


É aquele ou aquela que acredita que dotado de alguma espécie transcendente de razão tem mais entendimento da causa e o seu bem que todos os outros, sabota as próprias convicções por incapacidade de negociar para além do histrionismo.


No Brasil, a política é um cemitério de consciências e um prostíbulo das virtudes, com seus mortos que respiram, fiéis que obedecem, mas que já não acreditam em nada.


Há, contudo, um tipo de lealdade que redime. Todo aquele que rompe com uma causa injusta em nome da justiça. O traidor pode até ser o mais leal dos homens ao se recusa a compactuar com o mal, mesmo à custa da própria reputação.


Deixar de lado uma causa natimorta e infeliz, pode o tornar tal como o profeta que abandona o templo corrompido, o soldado que se recusa a atirar no inocente, o cidadão que rompe com o partido porque escolheu permanecer fiel à verdade.


No Brasil, o traidor leal seria aquele que diz “não” ao seu grupo quando o grupo trai o país. E é justamente esse tipo que mais nos falta.


O conservadorismo brasileiro gosta de se ver como guardião dos valores ocidentais, mas esquece que, no Ocidente, os valores nasceram do conflito moral, do momento em que alguém ousou desobedecer ao poder para ser fiel à consciência. Lealdade, na tradição cristã e royceana, é uma forma de caridade, é o amor por algo maior que nós mesmos. Não é uma coleira, é uma vocação. A lealdade verdadeira é livre, porque só pode ser fiel quem é capaz de dizer “não”.


Ser leal à lealdade, portanto, é mais difícil do que ser leal a um homem ou a um partido. Exige discernimento, coragem e humildade, três virtudes ausentes do nosso vocabulário político. Exige admitir que a causa que defendemos pode se tornar indigna. E exige o gesto final, o mais difícil, o de romper. Porque a lealdade autêntica é criadora de novos mundos morais e conservadora de tradições e valores. E isso é tudo o que o conservadorismo brasileiro deixou de ser.


Hoje, as palavras pátria, fé, família e liberdade aparecem nas bocas dos mesmos que as profanam com seus atos. Invocam o vocabulário da virtude, mas vivem da linguagem do poder. E, no entanto, continuam falando em lealdade, como se a palavra bastasse para redimir a impostura. Não basta.


Lealdade não é uma etiqueta ideológica; é uma forma de vida. E, enquanto os que se dizem conservadores não compreenderem isso, continuarão sendo o que já são, fiéis a tudo, menos à fidelidade. Excepto a causa própria.

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Sobre o autor

José Ribas Neto é jornalista investigativo, escritor e editor. Atua na linha de frente do jornalismo independente no país, com foco em política, corrupção, direitos civis e uso de recursos públicos. Paralelamente, desenvolve pesquisa e reflexão nas áreas de comunitarismo francês, literatura humanista — com especial interesse na obra de Erich Auerbach — e realismo político, a partir do pensamento de Carl Schmitt.

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