Por: Bruno Fontana
27/05/2022

Como vencer um debate sem precisar ter razão
A rigor este livro está mal batizado. O título pode sugerir ao leitor um manual de patifaria intelectual ou mesmo, no campo da retórica forense, um guia para advogados do PT. Que não se empolgue o brasileiro médio com seu “jeitinho”, não se trata de mais um truque do tipo “estacione em vaga de deficiente e saia mancando”, cujo intuito é pura e simplesmente tirar vantagem dos outros – se bem que este escrito, como tudo na vida, possa ser utilizado tanto para o bem quanto para o mal. Na magnífica introdução de Olavo de Carvalho, fica claro que o objetivo não é ajudar o leitor a passar a perna no seu semelhante, mas ensiná-lo a pegar no flagra os patifes que costumam praticar, com a maior cara de pau, a discussão desonesta, o charlatanismo retórico. Afinal, depois de desmascarar a falta de inteligência da intelligentzia brasileira – que, por medo de preconceito burrofóbico, nunca teria saído do armário sozinha –, restava a cortesia de apresentar os fundamentos do método preconceituoso. Daí veio a ideia de tecer comentários a um livro, escrito por outro filósofo (Arthur Schopenhauer), que sistematizasse os princípios da falsificação intelectual; mostrando assim que polêmica jornalística também pode ser boa filosofia – com o diferencial, porém, de ser feita em praça pública.
Na resenha que se segue, o leitor terá um resumo do ensaio introdutório de Olavo de Carvalho (Parte I), ao qual seguem trechos de debates políticos, jornalísticos e intelectuais – todos no YouTube –, em que algumas trapaças apresentadas no livro são utilizadas (Parte II). Assim, ficará claro que a desonestidade dialética permeia as discussões públicas em quantidade bem maior do que a tolerável; e talvez, depois disso, o leitor chegue à conclusão de que a melhor saída para esse estado de coisas é, de fato, o pessimismo schopenhauriano. Por isso, sendo mais sensato precaver que remediar, já aviso: não me responsabilizo por possíveis consequências psiquiátricas da leitura.
Parte I – O calabouço sem janela
Se bem que alguma coisa sempre me faz sentir que quando
Bruno Tolentino
não arrisco contradizer-me esbravejo em vão…
Antes de mais nada, um nariz-de-cera será necessário. Ainda que o tema do livro seja o mundo das ideias, das disputas de opinião, Olavo de Carvalho faz questão de notar que nunca se deve confundir aquele com estas, isto é, o mundo com as ideias. Talvez esse aviso possa soar como uma ofensa às inteligências mais altivas, mas, sob o risco do mal-entendido, às vezes é preferível enfatizar o óbvio a desconsiderar o leitor desavisado. E o óbvio nesse caso é que “a capacidade de argumentar, por necessária que seja nas circunstâncias práticas da vida intelectual, é habilidade menor e derivada em relação ao perceber e ao intuir”; e que, por isso, muitas vezes a melhor saída contra um debatedor malicioso é simplesmente dizer a verdade tal como ela é ou ficar calado feito um sábio chinês que pratica o princípio do não-agir. Afinal, muito mais vale uma verdade percebida do que mil argumentos vazios, da mesma forma que bem melhor é apreciar o mundo-como-tal de boca fechada do que tagarelar pomposamente sobre o mundo-como-ideia. Sabedoria não é sinônimo de verborragia, sabedoria é visão, dirá Wolfgang Smith. Em resumo, segundo Olavo de Carvalho, o único e verdadeiro antídoto ao irracionalismo racionalista das infindáveis discussões contemporâneas é o primado intelectual da interioridade sobre o exterior, da verdade supra-racional sobre a razão, do rapto sobre o conceito, do mundo real sobre a ideia do mundo: proximus ille deo est, qui scit ratione tacere – mais próximo de Deus está quem sabe ficar calado quando deve.
Dito isso, passemos ao livro propriamente dito. A hipótese de Olavo para explicar o intuito de sua escrita por Schopenhauer supõe que, na época, este tivesse em mente sobretudo o desejo de disputa contra seu arqui-inimigo intelectual: Georg W. F. Hegel, o feiticeiro de Jena, como o apelidou Eric Voegelin. Contudo, sem tempo de terminar a forja do livro-espada antes que o adversário morresse, o filósofo pessimista teria abandonado incompleto o projeto extemporâneo para se dedicar à consolidação do próprio sistema filosófico. Daí surgiu a ideia inusitada de traduzir o texto de Schopenhauer e completa-lo, tecendo notas e comentários a fim de oferecer ao público brasileiro “instrumentos de defesa, não de ataque. […] ajuda-lo a resguardar-se dos tagarelas, e não a transformar-se num deles”. Mais do que isso, “Como vencer um debate sem precisar ter razão” ainda apresentava a vantagem de fazer muitas referências à dialética aristotélica, assunto ao qual Olavo de Carvalho já tinha dedicado o seu famoso “Aristóteles em nova perspectiva: introdução à teoria dos quatro discursos” – o que possibilitou que, além de tudo, o livro se tornasse um desenvolvimento e uma nova aplicação da teoria do filósofo brasileiro.
Assim surge inclusive a pergunta que norteia todo o ensaio introdutório: no esquema dos quatro discursos, onde é que entra a Dialética Erística, técnica discursiva apresentada por Arthur Schopenhauer? Segundo o Aristóteles de Olavo, da síntese dos dados sensíveis realizada pela imaginação (Poética), surgiriam narrativas discordantes sustentadas pela capacidade persuasiva dos oradores que as defendem (Retórica). A partir do acúmulo de discursos retóricos contraditórios nasce a necessidade de articulá-los hierarquicamente a fim de indicar o sentido de uma solução mais provável (Dialética). Só então seria possível estabelecer princípios científicos capazes de orientar a razão por uma direção maximamente certa (Lógica). Eis as quatro ciências do discurso: Poética, Retórica, Dialética e Lógica. A Erística, nesse quadro, seria um ramo secundário da Retórica; seu objetivo, diz Aristóteles, é justamente estudar os meios pelos quais se vence um debate sem precisar ter razão. Dito de outro modo, se a Retórica é a arte da persuasão em geral, podendo ser usada per fas et nefas, a Erística, por outro lado, é a arte da vigarice intencional, da discussão propositalmente fraudulenta.
Mas o problema é que para Schopenhauer a Erística se confunde com uma outra arte: a Dialética, o que está bem longe de corresponder à concepção aristotélica originária. Na verdade, Platão mesmo já havia demarcado distinção clara entre as duas artes: por mais que ambas fossem técnicas de discussão, a Dialética era um método superior de busca da verdade, que ia separando de pouco em pouco o essencial do acidental, o joio do trigo, até chegar ao conhecimento intuitivo dos princípios (arkhai); assim, na apreensão da unidade real do referente, transcendendo as relações lógicas em função das ontológicas, resolvia-se a aparente contradição dos discursos opostos. Para isso, inclusive, era imprescindível que os debatedores estivessem mais preocupados com a verdade do que com as palmas. Dialética se tornava sinônimo de método filosófico: “a conversação entre dois filósofos devia ser tão sincera e rigorosa como a de um homem que dialoga a sós com sua própria consciência.” Já a Erística, muito ao contrário, sendo a arte por excelência da discussão capciosa, não tinha por objetivo senão a vitória sobre o adversário na disputa das opiniões, podendo o orador lançar mão de quaisquer intrujices para isso: quem fosse mais sujo, sem que reparassem no fedor, era o maior. Trata-se, em resumo, de uma parfumerie verbal, de prestidigitação discursiva. Como pôde Schopenhauer confundir a verdade com o seu perfume, o logos com a doxa, é justamente o que queremos descobrir.
Segundo Olavo de Carvalho, depois das metafísicas racionalistas do início da Modernidade, que supervalorizavam o discurso lógico em detrimento dos outros três, só na filosofia de Schelling uma maior importância voltou a ser dada à Dialética. Para ele, assim como para Platão e Aristóteles, a filosofia era essencialmente dialética, sem deixar, por isso, de ter como meta última a intuição intelectual de Deus, a Identidade suprema, causa absoluta de tudo quanto existe. A realidade nesse sentido não passa de manifestação do divino, teofania, que somente do ponto de vista da razão humana se desdobra sob a forma de Natureza, por um lado, e de subjetividade, por outro. À dialética schellinguiana caberia então a função de superar as limitações da mente humana – intransponíveis pela Lógica analítica – para reconhecer que todo aparente dualismo de sujeito e objeto, Homem e Natureza encontra seu fundamento na unitotalidade transcendente de Deus: n’Ele vivemos, nos movemos e somos. A razão dialética atravessa o campo, dribla a zaga e toca, o intelecto recebe, intuitivamente chuta a bola e acerta o gol, que, de forma retroativa, dá sentido a toda a trajetória percorrida pelos jogadores. Se as técnicas dialéticas de drible do pivot não servem para fazer gol, o goleador-intuição, não raramente, não sabe driblar: a colaboração entre ambos é, portanto, fundamental. Mas a brilhante descoberta – ou, melhor dizendo, redescoberta – de Schelling durou pouco. Hegel, acaba com esse equilíbrio de método e ontologia, razão e intuição ao reduzir o próprio Absoluto à Dialética, isto é, o gol ao drible, afirmando ser Deus um conceito vazio que só ganha realidade de acordo com o avanço dialético da História – tomada agora como substância do Absoluto – em direção a seu destino glorioso: a apoteose do Estado Moderno. De um só golpe Hegel antecipou Marx e Nietzsche, matou Deus e divinizou a Política. Assim como os racionalistas se apegaram à Lógica desprezando tudo o mais, Hegel o fez com a Dialética.
Schopenhauer então, “essa alma religiosa e sofredora, condoída das Dores do Mundo, esse pensador profundamente pessoal” e por natureza defensor da interioridade humana, se estarreceu diante do avanço avassalador da máquina histórico-dialética de Hegel a gerar o mais frio e impessoal dos monstros, um Frankenstein abstrato: o Estado moderno. E para se contrapor a isso ele precisava criticar a raiz mesma do sistema: a Dialética. O problema foi que em vez de jogar fora apenas a água, com ela jogou também o bebê; na intenção de criticar a filosofia de Hegel, Schopenhauer acabou por reduzir toda a Dialética à Erística, afirmando implicitamente com isso ser Hegel nada mais do que um charlatão. Assim o espectro vário dos discursos humanos ficava dividido em não mais que dois pólos opostos: de um lado, a razão buscadora da verdade, representada pela Lógica, do outro, o irracionalismo completo dos discursos restantes, dentre os quais se encontram tanto a Dialética quanto a Erística, agora jogadas na mesma “laia”. Com isso Schopenhauer deu continuidade à filosofia kantiana e dela tirou consequências que o próprio Kant não quis enxergar: se o único discurso racionalmente válido é a Lógica, e ela, como já vimos, não dá conta de superar, sem ajuda da Dialética, as contradições do entendimento – as “antinomias” de que falava Kant – segue-se que a famosa coisa-em-si, inacessível ao Homem, seja intrinsecamente irracional. Ou seja, se só a Lógica é racional, mas a estrutura do real ainda assim não pode ser apreendida por ela, é forçoso concluir que a realidade seja ela mesma irracional. Desse modo, diz o filósofo brasileiro, “a negação da dialética como racionalidade imperfeita, em prol da perfeita racionalidade da lógica analítica, desemboca no completo irracionalismo.” O resultado de toda essa disputa, essa sim verdadeiramente erística, é termos de um lado o Estado investido do prestígio sacro do Absoluto, de outro uma apologia do solipsismo cético travestida de logicismo vazio, eis o prenúncio de uma nova era: o século XX.
Essas duas tendências vieram a se manifestar sobretudo na materialização da dialética comunista e no advento da nova lógica matemática. Karl Heinrich Marx pega a ideia da dialética hegeliana e a radicaliza a ponto de reduzir toda a História a um confronto dialético de classes sociais – oprimidos vs opressores – pela apropriação materialista dos bens da natureza. Lenin, continua Olavo, decidido a instaurar o socialismo pelo bem ou pelo mal, transforma a dialética marxista em técnica de golpe de estado para a conquista do poder; e, mais tarde, depois do fracasso da Revolução, os teóricos da Escola de Frankfurt continuam a se utilizar da mesma arte, porém dessa vez como instrumento de análise crítica imperdoável dos horrores do mundo capitalista: o objetivo deixou de ser a revolução armada e passou a ser o deleite mórbido e desesperançoso da “crítica radical de tudo quanto existe”.
De técnica filosófica milenar a prostituta da ideologia comunista, a Dialética foi tão rebaixada que passou a ser desprezada abertamente por pensadores tão díspares quanto Martin Heiddeger, Jean Piaget e Bertrand Russel. Inevitavelmente isso contribuiu para aprofundar ainda mais o abismo já aberto por Kant e Schopenhauer entre as duas ciências irmãs: a Lógica e a Dialética. Os principais encarregados da escavação foram o próprio Russel e Alfred North Whitehead, com contribuição posterior de um entusiasta: Ludwig Wittgeinstein. A escavadeira utilizada foi a publicação, em 1913, dos Principia Mathematica, que tentou realizar o antigo sonho cartesiano: a redução de todo o saber humano a um sistema de dedução lógico-matemático. Mas o plano fracassou, Russel para se manter fiel aos Principia se viu obrigado a trocar de filosofia ao longo da vida como quem troca de roupa, perdendo em coerência psicológica toda a perfeição que havia prometido para o campo da lógica. Wittgeinstein, desenganado, buscou refúgio no vulgar estereótipo religioso oferecido pelo pseudo-misticismo, fenômeno típico de um século que, por não crer mais em Deus, acaba crendo em qualquer coisa como mecanismo de compensação psíquica. E Whitehead, last not least, foi o único que conseguiu entrever um pouco de luz desde as profundezas do abismo que ele mesmo havia cavado: depois de deixar os Principia completamente de lado, “procurou restaurar uma visão orgânica e unitária do mundo e chegou a conclusões que, integrando as contribuições da física moderna e do pragmatismo norte-americano, voltam aos temas da metafísica tradicional”, por meio de métodos não totalmente alheios à antiga Dialética.
Depois de tudo isso, a conclusão que nos deixa o filósofo brasileiro é incontornável: se por um lado a) o estudo da Erística é pré-requisito para quem queria distinguir, tanto em si quanto nos outros, a vigarice da honestidade intelectual, por outro b) esse estudo só deve ser feito desde que a arte em questão esteja colocada no seu devido lugar, isto é, dentro da hierarquia aristotélica dos discursos – preferencialmente sem prejuízo da Dialética, pois seu valor epistemológico, como vimos, é inegociável. Todo o esforço filosófico de Olavo de Carvalho neste ensaio, ainda que traje vestes linguísticas de altíssima estirpe literária – aliás, das mais nobres que o Brasil jamais viu –, no fundo parece não buscar senão aquilo que Edmund Husserl propôs como lema mesmo de sua filosofia: o retorno às próprias coisas, à realidade – itinerário que apenas pode ser percorrido segundo o guiamento da razão dialética. Caso contrário, corre-se o risco do trágico fim que obteve a Medusa de Bruno Tolentino, deparou-se com um beco sem saída, um calabouço de ideias-estátua desprovido janela:
“Suponha-se a Medusa redimida, uma anti-Medusa que acordasse em seu poço de estátuas face a face com a escuridão da pedra e, arrependida, saudosa agora do fugaz, da vida, de tudo o que exilou, enfim tentasse um novo olhar, o olhar da despedida, por exemplo, o olhar do desenlace, da resignação... Pobre coitada! Como trazer de volta agora aquela doce fragilidade dantes, se ela já mal recorda a ânsia, o quase-nada, o brilho que era o ser? A madrugada não volta a um calabouço sem janela.”
Parte II – Exemplos de estratagemas erísticos
I) Gabriela Prioli vs Monark – Falsa reductio ad absurdum:
https://www.youtube.com/watch?v=7oDXXkA3BkI
O tema do debate é educação. Monark tenta afirmar que a educação brasileira é ruim em relação à de outros países, como Singapura, mas Gabriela Prioli o contraria dizendo que, sem a apresentação de determinadas estatísticas, o argumento de Mornark é vazio, pois desprovido de referência a dados da realidade, e dá um exemplo mais ou menos assim:
G. Prioli: “Vou pensar em um exemplo […]. Sabe o que eu acho um absurdo, Monark? Eu acho um absurdo que você não tenha engordado durante pandemia.” Monark: “Mas eu engordei.” G. Prioli: “Não, mas eu acho que você não engordou.” Monark: “Mas onde você está baseando a sua opinião?” G. Prioli: “Viu? Você quer que eu me baseie em um dado da realidade. É isso que eu estou tentando te falar! […] Você pode afirmar o que você quiser sobre educação, mas sem conhecer detalhadamente as estatísticas, você corre o risco de não estar se referindo a nada na realidade.”
Prioli faz uso aqui do que Schopenhauer chama de “falsa reductio ad absurdum”. Tirar consequências absurdas do argumento de seu oponente não é errado, é um recurso logicamente válido na verdade. O problema é, como faz Prioli, tirar falsas consequências com base na distorção dos argumentos apresentados. Monark, havia dado o exemplo de Singapura, um país com uma “educação de merda” que evoluiu consideravelmente em pouco tempo, tornando-se referência mundial no assunto; ele apenas não sabia citar as fontes e as informações com precisão, mas tinha uma noção geral da questão. E, ao invés de contra argumentar ou apresentar outros dados, Prioli, a partir de uma simples falta de precisão informativa, conclui que Monark estava completamente desprovido de dados e reduz falsamente seu argumento ao estatuto de opinião vã e sem fundamento.
II)Jordan Peterson vs Cathy Newman – Ampliação indevida (09:27 – 10:27):
https://www.youtube.com/watch?v=aMcjxSThD54&t=474s
O tema aqui é o pay gap (diferença salarial) entre homens e mulheres. A entrevistadora Cathy Newman pergunta a Jordan Peterson se ele ficaria feliz caso o pay gap desaparecesse completamente. Jordan responde que depende de como aconteceria esse desaparecimento, pois ele poderia ir contra os interesses naturais das próprias mulheres, dentre os quais estão a vontade de ter filhos e de escolher trabalhos muitas vezes menos lucrativos. A partir daí o debate continua mais ou menos da seguinte forma:
C. Newman: “Mas por que as mulheres não deveriam ter o direito de escolher não ter filhos ou de escolher outros tipos de trabalho?” J. Peterson: “Elas têm direito, elas podem escolher.” C. Newman: “Mas você acha que isso faz com que elas sejam em geral infelizes.” J. Peterson: “Não, eu não estou dizendo isso, e eu na verdade não disse isso em nenhum momento” C. Newman: “Você está dizendo que isso as faz miseráveis.” J. Peterson: “Não. Eu disse [em outro momento da entrevista] que o que as faz miseráveis é ter parceiros fracos. Isso faz as mulheres miseráveis.”
Cathy usa aqui o que Schopenahuer chama de estratagema da “ampliação indevida”, ou seja, trata-se de ampliar exageradamente as afirmações do adversário, pois quanto mais geral é uma afirmação tanto mais ataques se pode a ela dirigir. Em nenhum momento Peterson disse que as mulheres não devem ter o direito de escolher ter filhos e nem que isso as faria infelizes. O psicólogo canadense apenas afirmou que a extinção total da diferença salarial entre sexos não é necessariamente boa, pois pode ir contra a preferência das próprias mulheres já que elas não necessariamente querem as mesmas coisas que os homens. Mas a entrevistadora faz parecer que outras ideias, bem mais polêmicas, decorrem das afirmações de Peterson, ampliando indevidamente o seu sentido para criticá-las.
III) Rubem Alves vs Darcy Ribeiro – Desvio (38:50 – 43:16):
https://www.youtube.com/watch?v=nNzvIQmsaN4
O debate tinha como tema “utopia”. Em certo momento, Rubem Alves, numa postura eminentemente apolítica, critica a ideia de grandes utopias, como é o caso do comunismo, em defesa das pequenas utopias, os pequenos sonhos humanos, que muito menos tem a ver com política do que com as “tremendas trivialidades” do cotidiano, para citar Chesterton. Darcy, porém, critica a opinião de seu oponente e ainda recomenda que ele se filie a um partido político. A troca de argumentos continua assim:
Rubem Alves: “Eu jamais entrarei em um partido político, porque os partidos exigem que todos pensem igual. Quando houve um plebiscito sobre presidencialismo e parlamentarismo, o José Genoino e o Lula eram contra o presidencialismo. Por fim, a utopia presidencialista ganhou e, por isso, Genoíno foi condenado a um silencio obsequioso. Eu pergunto: o que é pior, ser condenado ao silêncio pelo inimigo e ditador ou pelos próprios pares?! Por isso eu jamais entrarei na política.” Darcy Ribeiro: “Todos os politicões queriam o parlamentarismo, o Rubem aparentemente também. Quem escreveu o manifesto presidencialista, desmascarando a canalha parlamentarista, fui eu. O problema fundamental é o seguinte: você entregaria a nação aos deputados? Claro que não! Um presidente eu posso mudar. Mas com o parlamentarismo entrará um cara que só eles mesmos mudam.”
Não é preciso ter muito mais que dois neurônios para perceber que Darcy aqui nada respondeu da crítica de Rubem Alves, muito ao contrário, serpenteou os argumentos a fim de sair por cima, mudando completamente o assunto da discussão. Da homogeneidade de pensamento revoltantemente forçada pelos partidos políticos, passou a discutir parlamentarismo e presidencialismo, os quais não eram senão um elemento acidental da fala de Rubem. O nome dado a esse estratagema por Schopenhauer é desvio.
IV) Vladimir Safatle vs Stefan Molyneux – Homonímia sutil (7:30 – 17:00):
https://www.youtube.com/watch?v=6_wN2L2-Kjo
Safatle e Molyneux, conversam nesse vídeo a respeito da função do Estado na sociedade. Molyneux primeiro afirma ser o estado uma instituição essencialmente coercitiva, concluindo daí que, por definição, ele não pode ser bom: o Estado, nesse sentido, é sempre imoral, pois a violação da liberdade individual é condição sine qua non de sua existência mesma. Safatle, em sua resposta, diz mais ou menos o seguinte:
“Eu entendo a sua afirmação de que o estado é um tipo de estrutura coercitiva. E eu posso concordar com essa visão. Mas tenho problemas com a visão de que, por isso, o estado bloqueia a autonomia e a autenticidade da sociedade civil. Afinal, nós podemos usar essa mesma descrição para todas as instituições que eu consigo imaginar: por exemplo, eu posso dizer que a família também é coercitiva, assim como as religiões e até mesmo os indivíduos. Há algo definitivamente coercitivo e disciplinar na constituição de uma individualidade. Então eu acho que um ponto de vista mais correto não enfatizaria essa característica do estado.”
O estratagema aqui é claro, Vladimir Safatle brinca com o sentido da palavra “coerção”. Se Stefan Molyneux estava pensando em coerção como uso intencional da violência para tirar a liberdade de alguém, Safatle passa a falar de coerção quase como sinônimo de adversidade, a fim de concluir que absolutamente tudo é coercitivo, visto que, não só o Estado, mas a família, a religião e tudo o mais se nos apresenta muitas vezes como um tipo de circunstância adversa à qual temos que nos adaptar. Mas, fazendo isso, ele não refuta Molyneux, ele sutilmente pressupõe outro significado para o termo coerção, um homônimo, e com base nessa nova definição ele finge refutar o que o outro debatedor havia dito. Mas basta prestar atenção para perceber que isso nada tem de argumentação lógica, senão de puro jogo de palavras.
V) Denis Burgierman vs Flávio Morgenstern – Petição de princípio oculta (16:00 – 18:00):
https://www.youtube.com/watch?v=UIKCIGU4oFo&t=1202s
O debate entre Denis Burgierman e Flávio Morgenstern, ocorrido em um famoso programa de rádio, tinha como tema o “pensamento de Olavo de Carvalho”, até que em um determinado momento, uma das apresentadoras, Paulinha, pergunta o que os debatedores têm a dizer a respeito do Foro de São Paulo:
Paulinha: “Foro de São Paulo, o que é?” D. Burgierman: “O Foro de São Paulo existe, são velhinhos dirigentes de partidos de esquerda da América Latina inteira, que se encontram e ficam ‘planejando a Revolução’. Mas eles não têm poder nenhum.” F. Morgenstern: “Espera aí! Eles dominaram a América Latina inteira. Eles não têm poder nenhum? O Foro de São Paulo se reúne para discutir estratégias, os membros vão lá, transformam vários países da América Latina em socialistas e você diz ‘eles não têm poder nenhum’. Como não, meu Deus do céu?!” Paulinha: “Mas muita gente diz que ali [nos encontros do Foro] não acontece nada.” D. Burgierman: “Acontece, as pessoas conversam, tudo é público, não existe nenhuma conspiração acontecendo por trás das cortinas, e o Foro não tem nenhuma relevância pro mundo. […] O evento existe, eu estou dizendo que o evento existe, ele tem muito pouca relevância, a imprensa não cobre porque é irrelevante.”
O estratagema aqui é a petição de princípio oculta (nesse caso, talvez nem tão oculta assim), que nada mais é do que postular como certa a opinião que você precisa provar, sem que o oponente ou a plateia percebam. Inicialmente Burgierman afirma que Foro de São Paulo não passa de um encontro de “velhinhos” inofensivos que perdem seu tempo com delírios revolucionários desprovidos de qualquer relação com a realidade geopolítica do dia. Morgenstern, porém, o contradiz apresentando o fato de que quase toda a América Latina já foi dominada por governantes socialistas que só puderam tomar o poder simultaneamente porque haviam se articulado através do Foro; o que torna delirante, esta sim, a afirmação de Burgierman. Mas, na sequência, em vez de contra argumentar, Denis troca por sinônimos as palavras já usadas, fingindo ter provado aquilo mesmo que necessitava provar para que sua fala tivesse algum sentido: com ares de superioridade intelectual, ele usa o termo “irrelevante” no lugar de “encontro de velhinhos”, como se apresentasse uma nova informação, sendo que isso era precisamente o que Flávio havia acabado de refutar.
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