Por: Bruno Fontana
27/05/2022

Nem Tudo Se Desfaz
"O fato central da nossa época é a violência generalizada a todos os setores da vida pública, a violência que pretende substituir o espírito no seu papel guiador das massas."
Otto Maria Carpeaux
Nem Tudo Se Desfaz não é filme ideológico. Em não sendo esquerdista, feito Democracia em Vertigem de Petra Costa, tampouco é governista; trata-se de cinema historiográfico, “memorial” – afirmou o diretor pernambucano Josias Teófilo. Anunciado como segundo item de uma trilogia que começou com O Jardim das Aflições – sobre o filósofo brasileiro Olavo de Carvalho –, o documentário estreou com a pretensão de registrar os grandes acontecimentos da política brasileira dos últimos anos (2013-2018), dentre os quais estão o surgimento da “nova direita”, a débâcle do PT, e a eleição do primeiro presidente conservador desde o fim da ditadura militar – com direito a entrevistas exclusivas com os filhos de Bolsonaro a respeito dos bastidores da facada. Em resumo, parafraseando Bruno Tolentino – uma das principais referências intelectuais do filme –, o que Josias fez foi documentar a recente história política do Brasil a partir da inteligência e dos fatos, nunca a partir dos fatos segundo a intelligentzia.
Para quem havia se encantado com a mistura sui generis de fluidez estética e filosofia pura n’O Jardim, Nem Tudo Se Desfaz pode ser um pouco decepcionante à primeira vista. Mas a menor exuberância de beleza fotográfica é compensada com a formidável compactação de fatos históricos – a ponto de fazer o espectador se sentir até um pouco lesado diante da quantidade de informações; e o achatamento da profundidade filosófica é transmudado na sinuosidade dialética da narrativa, que busca abarcar o real sem esquivar-se de tratar cada uma de suas complexidades idiossincráticas. Por exemplo, se a nova direita é importante porque abre espaço político a um tipo de pensamento até então completamente sufocado pela esquerda cultural, ela não deixa de ter o traço grotesco intrínseco à unanimidade das massas, que quase sempre são burras e/ou violentas; se Jair Messias Bolsonaro teve o grande mérito de representar corajosa e solitariamente os valores conservadores do povo brasileiro, nem por isso se deve relevar aquelas ideias suas que sejam inegavelmente risíveis e absurdas.
Imagem do trailer oficial
Somente na massa o homem pode libertar-se do medo do desconhecido – assim começa o filme com a narração fantasmagórica de Reynaldo Gonzaga. O privilégio dado a uma interpretação sociológica da História é evidente: o objetivo foi mostrar como as massas, tomadas enquanto agente histórico mais ou menos anônimo e fortuito, desempenharam, malgrado sua falta de coerência e autoconsciência crítica, papel central na política brasileira dos últimos anos. E, mais importante, segundo o documentário, uma das poucas coisas que tem o poder de conferir à massa algum tipo de unidade, apesar do coeficiente inevitável de caos, é sua natureza mimética, seu espírito de rebanho. Como João Cezar de Castro Rocha – o principal entrevistado – explica a partir do pensamento de René Girard, parece haver no homem uma tendência irracional de imitar o comportamento coletivo, tornando muitas vezes os indivíduos cúmplices da multidão fascista e violenta que, quanto mais cresce em espiral, menos conhece do seu verdadeiro propósito de ação.
A tese extraída a partir desse método sócio-histórico é simples: ao contrário da famosa frase heraclitiana de Marx – “tudo o que é sólido desmancha no ar” –, o documentário, talvez como um Aristóteles, deseja provar que “nem tudo se desfaz”, pois “em tudo anda um resquício”. Dito de outro modo, o poder político que as massas conquistaram desde a Revolução Francesa, e no caso do Brasil, desde 2013, provavelmente não se esgotará tão cedo.
Aliás, ainda que a teoria girardiana do desejo mimético tenha sido eleita fio condutor da narrativa, a ênfase na centralidade sociológica das massas remonta a pensadores um pouco mais antigos e prováveis: Ortega y Gasset já denunciava no começo do século XX a coletividade imbecil e violenta da nova classe média, que estava em vias de ocupar, apesar de sua burrice, o posto de elite dirigente: este nuevo bárbaro es principalmente el professional más sábio que nunca, pero más inculto también.
O 1º movimento do documentário – sua estrutura é homóloga à de uma sinfonia – mostra que foram justamente esses nouveaux maîtres, os señoritos arrogantes e déclassés que, sob o pretexto do aumento no preço das passagens, se aglomeraram caoticamente nas ruas do Brasil em 2013 a fim de reivindicar para si a miríade de direitos sociais falsamente prometidos na constituição de 1988. Foi a primeira vez em muito tempo que o povo brasileiro promoveu manifestações autenticamente populares, pois desprovidos de qualquer tipo de liderança advinda do establishment político-cultural do momento. O que houve foi uma rejeição do estamento burocrático completa e independente. A partir dali uma espécie de revolução brasileira começaria a acontecer.
Manifestações estudantis de 2013 - Imagem do Trailer oficial
No ano seguinte, com o início da Operação Lava-Jato, as forças da massa represadas começam a encontrar vasão e sentido na luta contra a corrupção (2º movimento), até serem cindidas em dois afluentes opostos em 2016: Não-Vai-Ter-Golpe vs Fora-Dilma – foram as maiores manifestações de rua da história do país. Ao mesmo tempo, a popularização das redes sociais abria um espaço cada vez maior para que a militância política não somente ocorresse nas ruas, mas na internet também: tratava-se o surgimento das massas digitais (3º movimento), fenômeno muito bem aproveitado sobretudo por uma personalidade que canalizaria ainda mais o espírito revolucionário do “gigante que acordara”. Jair Messias Bolsonaro, então deputado federal, foi a figura que passou a representar todas as bandeiras daqueles que haviam pedido a cabeça de Dilma. Rejeição do establishment, luta contra a corrupção, anti-petismo e uma novidade: apologia de ideais conservadores há muito esquecidos pela grande mídia, pelas universidades e pelos partidos políticos: PT, PSDB e tutti quanti. O principal meio de propagação da imagem de Bolsonaro, do “Mito”? Os mêmes – termo que não à toa deriva da palavra grega mimesis. Enquanto o desejo de imitação das massas agora dá lugar ao spam coletivo de imagens e vídeos anedóticos, a violência dos manifestantes é substituída pelo linchamento virtual.
Mêmes de Bolsonaro – Imagem do Trailer oficial
O processo revolucionário iniciado em 2013 perde de vez seu coeficiente de desorientação, pois encontra em Bolsonaro um líder. E o que havia começado como uma reunião caótica de manifestantes apartidários, pouco a pouco, deixa a indiferença ideológica de lado para assumir uma postura mais à Direita: eis – sugere o filme – o espírito do que Gilberto Freyre chamava de “revolução conservadora”, a mestiçagem autenticamente brasileira da busca pelo progresso revolucionário amparado na ordem axiológica do conservadorismo – “Ordem e Progresso”, diz a nossa bandeira.
E, se por um lado a massa sempre carece de um guia, por outro, diz Girard, para o melhor direcionamento de sua fúria, ela precisa de um alvo, um bode expiatório. De acordo com o documentário, a carapuça caprina serviu sobretudo ao impeachment de Dilma e à prisão de Lula. E foi por isso, por ter conseguido dar forma ao caos das multidões através de seu conservadorismo – um tanto superficial e irrefletido, é verdade –, indicando-lhes, ainda por cima, o caminho perfeito para a catarse do ressentimento enragé, foi por isso que Bolsonaro conseguiu se eleger em 2018 (4º movimento). Em suma, é assim que o documentário parece tentar explicar, através da ideia de desejo mimético, os últimos anos de nossa política. Mas uma pergunta é posta no final: qual será o destino próximo das massas violentas e insaciáveis que não têm previsão de desfazimento?
Manifestantes em Brasília – Imagem do Trailer oficial
A quem almeje uma real inteligência da História, contudo, isso não basta. É preciso questionar o próprio filme, perscrutar sua filosofia, espostejar seus pressupostos: será René Girard, de fato, suficiente para explicar Bolsonaro e o Brasil recente? Com sinceridade, não sei. Mas a verdade de que “nem tudo se desfaz”, essa sim, permanece, se não no âmbito da Política, no da Metafísica sem dúvida. Aliás, se bem me lembro, foi pensando nesta ciência, e não em outra, que Bruno Tolentino afirmou “andar em tudo um resquício”. E, por falar nisso, que faz Tolentino nesse filme, dando nome tanto a ele quanto à trilha sonora original (A Imitação do Amanhecer)? Um prenúncio do gran finale da trilogia? Seria realmente um belo trio: um filósofo, um político e um poeta, sob o bom gosto da direção de Josias Teófilo.
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