Por: José Ribas Neto
22/09/2025

Putos e valetes: a profanação dos liberais
Há episódios que parecem anedóticos, mas que, quando analisados com a devida atenção, revelam mais sobre a crise cultural contemporânea do que longos tratados de moral. É o caso do professor de filosofia Antônio Vargas, hoje colunista da revista Valete, periódico ligado ao Movimento Brasil Livre (MBL).
Antes de se apresentar como intérprete de temas homoeróticos sob supostos luzeiros “tradicionais”, Vargas administrava a página Revista Puto, onde circulavam imagens de Jesus Cristo e de outros ícones da santidade cristã sexualizados, um clichê démodé e obviamente homoerótico, produzidas por inteligência artificial.
Tratava-se de uma operação de profanação que, quando descoberta por desafetos bolsonaristas, foi rapidamente apagada, quase como quem limpa um passado inconveniente para se reinventar em outro palco, numa cidade onde ninguém o conhece.
O gesto, porém, não desaparece com a exclusão digital. Ele permanece como sintoma de um dilema maior do próprio MBL, que é a tentativa da direita liberal de vestir-se com a linguagem da tradição enquanto se alimenta de pressupostos estruturalmente inconciliáveis com qualquer ordem fundada na transcendência.
A começar por seus elementos de profanação que, como explica Giorgio Agamben em Profanações (2007), consistem em devolver ao uso comum aquilo que fora retirado da esfera do humano e colocado no domínio do sagrado. Mas tal restituição só é possível enquanto o sagrado ainda é reconhecido como tal. Numa sociedade que perdeu o senso do sagrado, a profanação converte-se em paródia vulgar. Em vez de libertar, degrada; em vez de religar, banaliza.
O caso Vargas ilustra precisamente essa degradação, pois as imagens de Cristo em poses sexuais não constituem gesto crítico nem verdadeira restituição ao uso, mas caricatura destinada ao consumo fast-food e concupiscente. São “profanações” em sentido menor — fraco —, produtos da mesma lógica de mercado que transforma tudo em mercadoria cultural. É apenas um perveso fetiche, tanto no sentido mercadológico de Marx quanto no sentido sexual concebido pela psicanálise freudiana.
Daí que o capitalista ou melhor, o liberal não tenha nem mesmo o senso de profano.
Agamben escreve: Se profanar significa restituir ao uso comum o que havia sido separado na esfera do sagrado, a religião capitalista, na sua fase extrema, está voltada para a criação de algo absolutamente Improfanável.”
O que Vargas fez não foi profanar, pois sua mente já fora embotada pelo liberalismo, não sendo capaz de compreender a acepção de sagrado além sua própria vontade; o que fez foi explorar um vazio simbólico para alimentar a engrenagem digital da provocação, vazia de sentido, além de um engano egoico e intelectualmente nulo de si mesmo.
Esse mesmo vazio explica o conteúdo de sua coluna na Valete, onde Vargas publicou o texto “Gays, Lésbicas, Queers e Crianças”, como se estivesse elaborando uma filosofia da sexualidade em chave “tradicionalista”. Há, porém, uma incongruência radical em sua tese, pois a experiência homossexual, quando erigida a paradigma cultural, não representa novidade disruptiva, mas um mimetismo da heterossexualidade privado de seu telos, a complementaridade do masculino e do feminino e a abertura à vida, que é a chave da criação.
O perenialismo sempre compreendeu os sexos como polos de uma diferença ontológica cuja finalidade não é intercambiável nem reversível. Masculino e feminino são princípios complementares que refletem a ordem da criação.
Quando a homossexualidade é tomada como norma ou celebrada como modelo alternativo, não se institui uma nova forma de vida, mas uma paródia deformada da relação originária. A “profanação”, aqui, revela-se novamente como caricatural.
Convém insistir que não se trata de ódio ou perseguição a indivíduos homossexuais, mas de reconhecer a inconciliabilidade entre a visão tradicional, que percebe a diferença sexual como reflexo de princípios metafísicos, e uma ideologia que faz da homossexualidade um valor social autônomo.
Essa ideologia não se explica sem a matriz liberal. O MBL, órbita na qual se insere a Revista Valete, abraçou o liberalismo como identidade política.
E ao contrário do que possa parecer, o liberalismo não é neutro, assim como muitos de seus adeptos e teóricos imaginam. Ele é, nas palavras de Danilo Castellano em Qué es el liberalismo, “a grande utopia do racionalismo moderno”.
Castellano observa que o liberalismo é difícil de definir, pois assume múltiplos rostos históricos, mas fácil de identificar em seu núcleo: a idolatria da liberdade. Não uma liberdade ordenada à verdade, mas uma liberdade negativa, entendida como liberação da lei, da natureza, da autoridade, do limite. É a mesma pretensão gnóstica que, desde Adão e Eva, se apresenta como vontade de “ser como deuses”, determinando o bem e o mal por conta própria.
Essa liberdade, diz Castellano, é luciferina, um “non serviam” metafísico que reivindica independência não apenas da lei divina, mas da própria condição ontológica.
A consequência é a soberania absoluta da vontade, onde o homem passa a ser senhor de si ao ponto de dispor do corpo, mutilá-lo, alterar sua natureza, reivindicar o suicídio como direito. É a “revolta egofônica”, para usar a síntese de Eric Voegelin.
A liberdade liberal é, assim, uma fuga permanente do dado, uma negação da criatura a materialidade do real e da concretude da realidade, é em suma uma ilusão de autocriação.
Por isso, conclui Castellano, o liberalismo não exalta o sujeito, como supõe sua retórica; dissolve-o.
Ao reduzir a pessoa a um feixe de vontades contingentes, transforma a consciência em fábrica de obrigações autoimpostas que, por isso mesmo, não obrigam. Sendo portanto natural que a moral desaparece, pois a liberdade deixa de ser medida pela verdade para tornar-se mero poder de autodeterminação.
As consequências políticas são inevitáveis, sendo a liberdade ausência de vínculos, toda regra é um mal. A comunidade política deixa de em sua forma perseguir o bem comum e se traveste apenas como uma barreira para proteger indivíduos de outros indivíduos.
Essa é a tese central do constitucionalismo liberal, que vê o Estado como inimigo e organiza a política como gestão de conflitos, não como busca de justiça. O Parlamento, nesse horizonte, não é lugar de razão, mas corretora de interesses.
O liberalismo, conclui Castellano, gera um círculo vicioso em que, em nome da liberdade, produz ora Estados totalitários (Rousseau, Hegel), ora Estados anárquicos (democracias “neutras” como a estadunidense e a francesa).
Em ambos os casos, o fundamento é o mesmo, aquele que tem o poder bruto como critério último.
É exatamente essa lógica que se manifesta no ecossistema do MBL. Ao abraçar o liberalismo como “direita moderna”, o movimento tornou-se herdeiro da mesma matriz que produziu o socialismo utópico e desembocou na Revolução Francesa. Ambos brotam da fonte anti-metafísica do naturalismo, que recusa a ordem da criação e tenta refundar a realidade à imagem da vontade humana. É um racionalismo tacanho de uma classe intelectual que confunde ideias com espetáculo.
Assim, a chamada “direita liberal” não é e nem pode ser conservadora. É apenas um espelho invertido da esquerda, onde combate o progressismo econômico de matriz marxista, mas reproduz o progressismo antropológico. Falam em ordem, mas dissolve a diferença sexual em identidades negociáveis. Invoca a tradição, mas a trata como peça decorativa em seu teatro publicitário-eleitoral.
A figura de Vargas é emblemática, ele é alguém que blasfemou ontem e moraliza hoje, sempre com a mesma moldura, a mercantilização de símbolos. É o retrato de uma direita que profana não para libertar, mas para vender, inclusive uma persona de si.
Pensará René Guénon, em A Crise do Mundo Moderno (1927), que esse processo como o triunfo do “reino da quantidade”, no qual o ser é substituído pelo número, a qualidade pelo cálculo, o mistério pela utilidade. O liberalismo, como filosofia da liberação sem critério, é apenas a forma política desse reino.
Por isso, tradição e liberalismo são inconciliáveis. A tradição é hierarquia, forma e limite; o liberalismo é dissolução, plasticidade e negação do dado, da realidade.
A tradição reconhece a liberdade como adesão ao verdadeiro bem; o liberalismo a define como emancipação da verdade.
Não há síntese possível.
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Sobre o autor
José Ribas Neto é jornalista investigativo, escritor e editor. Atua na linha de frente do jornalismo independente no país, com foco em política, corrupção, direitos civis e uso de recursos públicos. Paralelamente, desenvolve pesquisa e reflexão nas áreas de comunitarismo francês, literatura humanista — com especial interesse na obra de Erich Auerbach — e realismo político, a partir do pensamento de Carl Schmitt.
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