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Raul Seixas não foi músico!

Nos últimos meses, Ed Motta soltou os pitbulls desarranjados e vê-lo nessa manifestação crítica meio pra furibunda pra cima de John Cash, Elvis Presley e outros produziu mal estar geral. O primeiro alvo da metralha giratória do Ed é brazuca, e logo quem??? O tão iconizado/endeusado Raul Seixas1. Lamentavelmente o Maluco Beleza não está mais aqui; não poderá, portanto, se defender. E haveria até defesa possível: o que o Ed Motta falou sobre a questão musical envolvendo o queridíssimo artista, mesmo se considerado apenas o ponto de vista técnico, caracteriza grosseira transgressão da ética profissional, o que indispõe os admiradores e colegas do agredido em relação ao acusador. Simples assim. Raul, se vivo, reagiria com energia, porque teria tido sua honra atacada, e procederia reagir. Palavras do Ed Motta: "Raul Seixas era sem caráter e um músico ruim pra caralho!". Não é por aí: as palavras disparadas contra o criador da amalucada Sociedade Alternativa não fazem senão enxovalhá-lo. Primeiro, o Raul jamais foi músico, mas cantor - compositor - intérprete. Tinha grande capacidade de urdir canções, e isso não é pouca coisa, claro, só que ainda é OUTRA coisa, maior; afinal, não são todos que fazem uma obra-prima como Ouro de Tolo. Ou uma linda valsa como Cachorro Urubu, cheia de mistérios - e talvez Raul nem se tocasse que essa faixa fosse uma valsa, tamanho era seu descuido com conhecimento da música. Mas aí é que o bicho pega: cunhar versos como"... é sempre a mesma batalha/ por um cigarro de palha/ navio de cruzar deserto" encaixados em melodia/harmonia simples, solene e bela é realmente acrescentar algo maior que o convencional da canção que rolava por aí. Então já começa com feia derrapada o que seria essa diatribe escancarada do Ed Motta pra cima do Maluco Beleza, cujo talento está em plano diverso, pois música para o Raul jamais foi meta.


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Ao seu primeiro guitarrista, um carioca meio erudito e bem preparado musicalmente correndo atrás de se firmar profissionalmente como guitarrista de carreira, Raul confiou NÃO GOSTAR de música. Surpreendente!... mas totalmente verdadeiro. E Mr. Motta, que não ouviu isso do Maluco, falou por ter outro tipo de experiência: a da aferição simples de teores musicais. Nessa mesma conversa já citada, falando-se sobre Beatles, o tal guitarrista revelou admirar Paul McCarthney, ao que Raul se contrapôs firmando-se como admirador do John. Ora, a beleza da obra dos Beatles vinha TODA ELA do Paul. Acrescentemos três ou quatro maravilhas do Harrison, como Something, My Sweet Lord e Here Comes the Sun, e temos a plenitude da beleza daquele grupo gestado, na verdade, pela Inteligência britânica – o que pouquíssima gente sonha saber.


A avaliação da obra ou do talento do Raul sob a régua dos teores musicais não deixa margem a discussões: Raul era totalmente DESINTERESSADO da arte de Santa Cecília. E seu trabalho inicialmente era colocado dentro de um cercado em que se praticavam deliberadamente consideráveis más intenções musicais: os porões da CBS, onde ele trabalhou como produtor de canção classe C, que visava faturar em cima de setores musicalmente atrasados e de onde se engendrou o "projeto" Roberto Carlos. Era o que tínhamos de menos recomendável em termos de valores musicais.


Ed Motta, batendo bem duro no Raul em vários pontos, não falou nada além do óbvio do ponto de vista musical, mas esse óbvio só é percebido pelos que podem, pelos que realmente sabem da música, e Mr. Motta é um desses. Saído, segundo relatos esparsos possivelmente até infundados, de um nicho musicalmente adverso, em que o tio imperava sendo responsável maior pela introdução da soul music em nossa canção popular, o transfigurado Tim Maia, de repente o sobrinho inverteu o sinal que já pairava sobre ele como talvez herdeiro do soul e desabrochou aos olhos de todos com um trabalho musical impressionista de alcance acachapante. O Programa do Jô, nos anos 1990, em que ele, recém chegado dos EUA, mostrou esse afloramento, causou perplexidade em músicos provectos, dada a profundidade melódica e harmônica apresentada. Se houve algo que surpreendeu músicos da pesada nas últimas décadas, uma dessas coisas foi o admirável afloramento do fenômeno Ed Motta. Com toda essa bola, é no mínimo estranho que ele se ocupe com detrair outros artistas...


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Voltando à vacum refrigerada, sua fala sem papas sobre o Raul mexeu nos brios de familiares do Maluco e nos de incontáveis fãs ardorosos do roqueiro que quase não compôs rock nenhum. No Google, dizem isso: "Raul Santos Seixas foi um cantor, compositor, produtor e multi-instrumentista brasileiro, freqüentemente considerado um dos pioneiros do rock brasileiro". Só nesse trecho vai uma informação furadíssima. Ele pode ser pioneiro do rock brasileiro sim, pois no começo da década de 1960 já tinha uma bandinha em Salvador, Raulzito e seus Panteras, o que o habilita como precursor, vá lá. Pois tendo em 1973 estourado com Let me Sing My Rock'n Roll, composição meio rock e meio baião, e logo depois Ouro de Tolo, um pop abolerado, ao longo de toda a sua produção apenas tangenciou aqui e ali o rock, muito mais como citação que como assumindo o gênero. Al Capone é uma dessas beliscadinhas; Let me Sing é rock só como pretexto, que logo vira baião. Tem Sociedade Alternativa, um quase rocão programático. E que mais? Mosca na Sopa, que é um ponto de candomblé em seu espírito e tem o B com uns compassos em rock? Não Pare na Pista é um roquinho do começo ao fim... e não vai muito além disso. Curiosamente, Raul ficou mais à vontade com o country, vide Cowboy Fora da Lei, quase clássico no gênero. Quanto a ser multi-instrumentista... ora, tenham juízo! Ele mal arranhava o violão e as belas guitarras que muito mais ostentava/exibia fazendo poses e se passando por instrumentista.


Fora isso, deu-se que Raul perseguiu foi o sucesso, e isso ele alcançou como poucos, transformado que foi num mito de quase inexplicável penetração no público. Virou um ícone não se sabe de que, e a respeito disso há especulações sobre pacto com o demônio, coisa de que ele falava direto, a partir de sua idéia fixa no mago Aleister Crowley, cuja morte na miséria acabou assemelhada à dele, só que este vergado a uma decadência aguda causada pelo abuso de álcool e cocaína, mas sem passar por privações. O tal do pó foi modismo nos anos 1970, todos iam: não era uma exclusividade do Raul; mas poucos morreram de abusar dele. Elis, que não era consumidora crônica tal como Raul, morreu disso, uma overdose combinando uísque e cocaína em noitada solitária. Voltando da divagada, o fato em questão é Raul e a música, e isso, como dizia o autor de Ouro de Tolo, "'tá tebocado", ou seja, não comporta discussão. Raul usou a música, que ele via como simples, mero suporte físico para sua proposta pessoal, a de atingir um estrelato que acabou atingindo mesmo, e como poucos.


Ed Motta foi bem infeliz no tom crítico assumido: ficou irremediavelmente feio. Alguns definem a coisa como tendo sido participação especial de Vinícola Aurora. Quanto a serem fracos os teores harmônicos, o próprio Raul admitia isso, e sem qualquer grilo. Quanto a Mr. Motta afirmar as melhores coisas compostas pelo Raul serem as letras do Paulo Coelho, discordo, todos discordam: as letras do próprio Raul chegaram às raias da lindeza, chegaram a ser primores. E o próprio Paulo Coelho não me deixa mentir. Disse ele: "O mais importante parceiro do Raul se chama Raul Seixas. Era com ele, essa dualidade, controlando sua maluquês...". Mais: a contribuição de Paulo Coelho na obra do Raul, tirando a estrondosa e ultra brega Gita, quase passa batida, ninguém se tocaria não fossem os clarins da mídia trombeteando a parceria e – vá se entender por quê – hipertrofiando SIM a dimensão do letrista. Vá alguém entender... O trabalho do Raul "ele mesmo" é muito mais fluido, mais vertical, mais vivo em imagens, mais irrequieto. Basta ver as contundentes e ricas imagens de Ouro de Tolo, que oscilam do mais rés do chão - "zoológico no domingo, dar pipoca ao macaco" – ao mais imponderável: "Longe das cercas embandeiradas que separam quintais/, no cume calmo do meu olho que vê/ assenta a sombra sonora de um disco voador...": riqueza simplesmente monumental!


E por ora estamos entendidos, e temos de admitir que Ed Motta descarregou, em explosão mercurial, artilharia pesada pra atingir moscas. "Parturiunt montes, nascetur ridiculus mus”: a montanha pariu um rato, isto é, o resultado foi pífio. Vale ainda considerar que o Raul ter sido funcionário de gravadora não implica obrigatoriamente em ser ele um homem sem caráter. Primeiro, o Raul NÃO FOI MÚSICO; foi compositor intérprete em que a música entrava como suporte, como trilho. Segundo, nesse ambiente não existem valores cristãos, vigora a lei da selva. Cada um por si, o diabo dominando a todos. E temos de lembrar que Raul só trabalhou como produtor de calhaus musicais na CBS pra pagar suas contas até conseguir se lançar. Foi assim, são fatos. E as canções Ouro de Tolo, Cachorro Urubu, Maluco Beleza, Caubói Fora da Lei e tantas outras ficaram como legado de um artista, não de um músico: e isso é patrimônio em nosso cancioneiro, queiram ou não seus detratores, que, por sinal, são raríssimos!

[1] https://www.youtube.com/watch?v=JXltWKA_zDE

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Música

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Sobre o autor

foi um filósofo e teólogo católico, nascido na Itália. Era filho de Adolf von Hildebrand, escultor alemão de renome, foi professor universitário e sofreu a influência de Max Scheler e de Edmund Husserl. De origem protestante converteu-se ao catolicismo romano em 1914.

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